Estou sentada à mesa da cozinha. É domingo, a chuva cai, em silêncio, ensopando as folhas amarelas que, no dia seguinte, já não estarão no chão. Surpreende-me sempre a impermanência das coisas vivas, como, num certo dia, estão lá, e no outro dia não. Penso nestas coisas, distraio-me, empurro a chávena de chá vazia que tropeça e se desfaz mal embate contra a tijoleira gelada. É a minha chávena preferida. Há flores pintadas à mão pousadas no chão da cozinha e da sala, como se um vento invisível as tivesse arrancado das cerejeiras, roseiras e japoneiras. A minha casa é a memória de uma rua num dia de abril, e é quase possível discernir o cheiro enjoativo das flores mortas misturado com a ameaça contida dos primeiros aguaceiros primaveris.
Fico em pânico. Sinto o desespero a desabrochar e a tomar conta do meu corpo, que arde e treme. Repito: partiu-se a minha chávena preferida. Tento arranjar uma forma de a consertar, percebo que será impossível colar os pedaços e recriar a forma original, procuro na internet uma idêntica, descubro que a produção há muito que foi descontinuada, navego obsessivamente por leilões, lojas de venda de porcelanas em segunda mão. É escusado. Pouso o telemóvel e resigno-me, calço as galochas e recolho os fragmentos maiores, coloco-os num saco de plástico que fecho e guardo num armário.
Tudo isto ocorreu há três anos. Escrevi parte desta recordação nas notas do telemóvel. Fecho a aplicação, levanto-me, abro as portas do armário. O saco de plástico está fechado dentro de uma caixa de cartão. Há agora outros sacos que contêm múltiplos objetos: uma jarra que o meu gato derrubou; uma dúzia de páginas que sobraram de um livro que se desfez quando caiu num tanque com água; uma pequena figura humana cuja perna esquerda e braço direito desapareceram.
Dizem-me que tenho uma relação pouco saudável com os objetos. Que, quando se estragam, quando se perdem, quando se desfazem, fico fora de mim. Penso, de forma recorrente, nas centenas de situações que podem consumir uma casa: um incêndio provocado por uma vela ou por um curto-circuito, uma inundação, um terramoto, um assalto, um desabamento. Os objetos são apenas coisas, dizem-me, é possível substituí-los, não te podes agarrar tanto, há coisas mais importantes.
Há coisas mais
importantes.
Nunca são apenas objetos. Não estabeleço com toda a parafernália de coisas esta relação íntima que me consome perante a possibilidade da sua perda. Comprei a chávena e a jarra numa pequena loja da minha cidade natal, numa época que me traz muitas recordações. A figura de cores desbotadas é uma cópia imperfeita que me foi oferecida por uma pessoa cujo silêncio ficou gravado nos membros perdidos da personagem de plástico. O livro, ou o que sobra dele, é daqueles que, de tão manuseados, ainda conservam o cheiro do perfume da casa de banho misturado com o do pão barrado com manteiga loreto, alheira grelhada, incenso e pinheiro, prova de que os livros, quando adquirem algum significado pessoal, se carregam para todo o lado, sobrevivem à infância e à adolescência, acompanham-nos na idade adulta, saltam de prateleira em prateleira, sentem a dureza da madeira das estantes e do chão das casas que alugamos e abandonamos.
Por favor, fiquem para sempre, digo eu às coisas que conheço.
A frase não é minha, é de Patti Smith.
***
Há cerca de uma semana, assisti ao documentário realizado por Jonah Hill, “Stutz”, sobre o seu psiquiatra, Phil Stutz. Não estava a prestar muita atenção, até que, no ecrã, surgiram as palavras “Loss Processing” (Processamento da Perda). Phil Stutz explica que as pessoas são más em processar uma perda, e que, antes dela, já estão preocupadas. Sugere “o poder da desvinculação”, ou seja, podemos querer muito uma coisa, mas também devemos estar dispostos a não a ter. O psiquiatra convida Jonah a imaginar algo que tenha medo de abdicar. Jonah fecha os olhos.
Imagina-te a agarrá-la como se fosse um ramo de uma árvore, é assustador, tens medo de a largar, mas largas na mesma. Quando a largas, começas a cair, mas não é uma má sensação, é uma queda lenta e gentil, para tua surpresa, mas estás a cair. Dizes: estou disposto a perder tudo. Tens de dizer em silêncio. Queres sentir o que estás a dizer. Quando o dizes, cais na superfície de um sol que estava por baixo e o teu corpo arde. Nesse momento, perdeste tudo porque o que possui é o teu corpo físico. Se o teu corpo ardeu, és só um raio de de sol entre os outros. Estás a irradiar em todas as direções. Estás a irradiar uma sensação de amor, de dádiva, que flui de ti. Depois olhas em volta e vês à tua volta um número infinito de sóis iguais àquele onde estás, todos eles a irradiar. Depois ouves os sóis a dizer em uníssono: “nós estamos em todo o lado.” É o mundo dos sóis. Aqui só podes dar, não podes tirar. Não te podes agarrar a nada, é impossível.
Este é o conceito fulcral da obra de Ruth Ozeki, “O Livro da Forma e do Vazio”. A narrativa inicia-se com a morte do pai de Benny e marido de Annabelle. Benny é um adolescente tímido, e após desaparecimento súbito do pai começa a ouvir vozes. Ao mesmo tempo, Annabelle vê o seu problema agravado, uma acumulação excessiva de objetos, aquilo que o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição ou DSM-5 carateriza como “Transtorno de Acumulação”. As vozes que Benny ouve são as vozes dos objetos que o rodeiam: os talheres, as canetas, as camisas de flanela do pai, os livros, os copos. Há uma situação, no início do livro, que é comum a uma das histórias mais famosas de Ozeki, “A Tale for the Time Being”: um pássaro vai ao encontro de uma janela da escola, sem se aperceber do que se trata, e embate contra o vidro, morrendo devido ao impacto. Benny fica perturbado, não pela morte do animal, mas pelo vidro da janela, e acaba por bater na janela com os punhos. Justifica a sua atitude quando é chamado à direção da escola:
Costumava ser areia. Lembra-se de ser areia. Lembra-se dos pássaros, da sensação dos pés deles, a andar. A fazerem pequenos trilhos. Nunca quis ser vidro. Nunca quis ser furtivamente transparente. Gosta dos pássaros, gosta de os ver da janela, por isso estava a chorar. Não devia ter-lhe batido, mas precisava que parasse.
Benny ouve os objetos, percebe se estão zangados ou calmos, tristes ou alegres. Conhece as memórias das mesas, o humor das chávenas, os pensamentos dos livros. Os objetos têm recordações. E, simultaneamente, temos o ponto de vista do Livro do Benny, um Livro que conta a sua história e que vai explicando a importância dos livros no mundo e para a humanidade.
É um conceito curioso, este, de os objetos terem memórias. Pego nas páginas guardadas no saco de plástico. Uma delas tem o autocolante da livraria onde foi adquirido, uma livraria que fechou há muitos anos.
Cresci numa cidade onde as livrarias lutavam por vingar, quando o inverno era ainda impiedoso e eterno. Enterrávamos os rostos na lã e no algodão dos nossos cachecóis enquanto aguardávamos que a senhora do café nos enchesse os sacos de plástico com rebuçados de caramelo, que depois engolíamos à pressa no recreio e surripiávamos durante as aulas. Nas tardes livres, fazia pequenos recados, ia ao talho comprar carne quer serviria para alimentar os gatos vadios, comprava resmas de papel para o meu avô e a revista maria para a minha avó. Se não houvesse pão fresco, davam-me dinheiro para comprar o lanche na escola, eu procurava caramelos perdidos nos bolsos e guardava as moedas e, quando conseguia o montante suficiente, surripiava-me à livraria mais próxima da escola. Os livros entreolhavam-se mal abria a porta envidraçada, havia pouco movimento durante a semana, e eu gostava de imaginar que as lombadas me seguiam, atentas e expectantes, olha para mim, a minha história vai agradar-te, se me levares para casa não te irás arrepender. Nessa época, não tinha acesso à internet, desconhecia as críticas literárias, as únicas pessoas que me aconselhavam eram o meu melhor amigo e a livreira. Este acabou de chegar, acho que vais gostar. A relação entre um livreiro e o leitor é peculiar, como se, sabendo os livros que figuram nas nossas estantes, conhecessem uma parte da nossa identidade escondida dos outros, revelando uma intimidade distante.
Tocava as capas com as pontas dos dedos, as mãos continham a ingenuidade própria de uma adolescente que desconhecia, então, que sempre gostaria de ver desenhos animados, descobrir histórias de fantasia, nutrir a vontade de preservar as memórias da infância, sem saber que a vida conteria muitos parágrafos dedicados ao trauma e ao abandono. Desconheço por que motivo certos livros nos chamam, sussurrando palavras que não conseguimos ouvir, palavras que se assemelham a parestesias que nos incendeiam as mãos. Foi desta forma que, por exemplo, “Uma Casa na Escuridão”, de José Luís Peixoto, me escolheu. Nada no aspeto exterior me atraiu, os portões lúgubres da edição da Tema & Debates incomodavam-me, tão diferentes das ilustrações coloridas dos livros de fantasia que devorava. Mas os livros têm motivos que a razão conhece e os leitores desconhecem. Para Benny, a biblioteca e os livros tornam-se centrais na sua vida:
Vagueava pelas estantes, deixando os títulos chamarem a sua atenção, descobrindo no processo que os livros têm as suas próprias vontades, que o escolhiam tanto como ele os escolhia a eles.
“O Livro da Forma e do Vazio” é uma história densa, às vezes com temas complexos, pois Ruth Ozeki é, além de escritora, sacerdotisa budista. Tal como “A Tale for the Time Being”, o zen ocupa uma parte importante da narrativa. Há uma personagem que nos remete para a japonesa Mari Kondo, uma empresária especializada na arrumação. Nesta história, Aikon é uma mulher que abdicou da sua rotina frenética para se tornar sacerdotisa. Ruth Ozeki escreve narrativas dentro de narrativas, e, neste livro, existem vários pontos de vista: o de Benny, Annabelle, o do Livro do Benny e do livro que Aikon escreveu (portanto, do ponto de vista de Aikon também). Já perto do fim do livro, Aikon descreve um episódio da sua vida: quando estava a servir chá ao seu mestre, a chávena escorregou e caiu ao chão. Era a chávena preferida do mestre, tinha-a recebido do seu professor. A chávena não se partiu, mas o mestre disse:
Já estava partida.
Aikon sente-se confusa. Não havia lascas ou qualquer defeito provocado pela queda. O mestre conta a história de quem fez a chávena, dispersando-se na narrativa, e Aikon, impaciente, repete que a chávena não está partida. O mestre responde-lhe:
- Para mim, está. É a natureza de uma chávena de chá estar partida. Por isso é que é tão bela agora, e porque a aprecio enquanto posso beber dela. - Fitou-a com carinho, deu um último gole e pousou a chávena vazia cuidadosamente no tabuleiro. - Quando se for, foi-se.
Nesse dia, o meu professor deu-me uma lição inestimável sobre a impermanência da forma e a natureza vazia de todas as coisas. (…) Quando tudo o que imagino meu - as minhas posses, a minha família, a minha vida - pode ser varrido num instante, tenho de perguntar-me: O que é real? A onda lembrou-nos de que a impermanência é real. Isto é acordar para a nossa verdadeira natureza. Já está partida. Sabendo isto, podemos apreciar cada coisa como ela é, e amarmo-nos uns aos outros como somos - completamente, incondicionalmente, sem expetativa ou desapontamento.
O que significam os livros nas nossas vidas? Os objetos que guardamos e expomos nas escrivaninhas, nas estantes, nas paredes das nossas casas, os objetos que vestimos, colares enrolados, anéis pendurados nas articulações, o que significam? Talvez a pergunta não seja esta. O que procuro não é esse significado, mas sim a aceitação da impermanência, abrir a mão e observar o movimento ascendente, os objetos não caem, libertam-se, como pássaros que partem, os livros não se esquecem, as histórias são problemas de forma e de vazio, como a poesia, como as fábulas, como as epopeias, como as palavras de Patti Smith:
Acredito no movimento, acredito no mundo, esse balão que vai continuando ininterruptamente a sua rotação. Acredito na meia-noite e na hora do meio-dia. Mas que mais acredito? Às vezes em tudo. Outras vezes em nada. (…) O meu lar é uma secretária. Uma amálgama de um sonho. O meu lar são os gatos, os meus livros e a minha obra nunca terminada. Todas as coisas perdidas que um dia poderão chamar por mim, os rostos dos meus filhos que um dia irão chamar por mim. (…) Tenho vivido dentro do meu próprio livro. Um livro que nunca planeei escrever e em que vou registando o movimento do tempo para trás e para a frente.
***
Partiu-se a minha chávena preferida. Os fragmentos de cerâmica espalharam-se pelo chão. Agora fazem parte da casa, escondidos em recantos inacessíveis ao olhar. Passar-se-ão anos até que encontre um diminuto pedaço, uma pétala de cores desmaiadas. Nessa altura, imagino, já terei aprendido que as pétalas são feitas para as apanharmos com as mãos em concha, para depois enchermos os pulmões de ar, soprarmos e observarmos como rodopiam, levadas pelo vento. É assim com tudo, até connosco. Às vezes, temos de abrir os armários, desfazer os nós dos sacos, pegar nos pedaços de loiça, nas figuras de plástico, nas páginas rasgadas, largá-las, deixá-las partir. No fundo, nunca lá estiveram e estarão lá para sempre, numa existência conjunta que se prolonga até ao infinito da forma e do vazio.