28 de setembro de 2022
13h35
Entramos em Lisboa. Trazemos, na mala do carro, escombros das férias, presentes, computadores, filmes fotográficos empacotados em cilindros de plástico, gabardines para a chuva que dizem que vai cair, camisolas frescas porque aqui o outono começa mais tarde e a primavera mais cedo. Noto a impaciência na voz do locutor e o nervosismo nos gestos do João. Não gosta de conduzir aqui,
detesto,
estou ansioso por chegar,
vamos estacionar o carro e andar a pé ou de metro,
só voltamos a pegar nele no fim da viagem.
É o trabalho que me faz regressar. Não visito a cidade desde aquele casamento na estufa fria,
lembras-te, na véspera do incêndio de Pedrógão,
acordámos e julgámos que era um pesadelo,
não, enganas-te, viemos cá naquele congresso de ginecologia,
estás confuso,
aquele, no museu do Oriente, não te lembras?
Não me lembro. As memórias de Lisboa rolam como seixos, misturam-se, perdem a identidade. Imagino o meu corpo no cais das colunas, os ombros cedendo à derrocada dos pés, dos tornozelos, das ancas, uma estátua esculpida de areia grosseira, falanges escorrendo pela pedra áspera, fios de cabelo transformados em sargaço.
14h38
Da janela do hotel, vislumbro parte do Campo Pequeno. É lá que decorrerá o concerto de Sigur Rós. A última vez que assisti a um concerto naquela sala foi há nove anos. Tenho de verificar a data no telemóvel, consultar o email, ler artigos de opinião nos jornais para confirmar. Foi também um ano antes de desmontar móveis, colocar todos os meus pertences em sacos de plástico e enfiá-los no carro da minha mãe, se algum polícia nos manda parar vamos ser multadas, estacionamos o carro no mesmo lugar onde, uns meses antes, encontraram uma pitão numa mala, o rosto da minha mãe horrorizado enquanto mastiga um croissant do Trenó,
quem guarda uma pitão no carro,
e tinha quatro metros,
não digas mais nada, vou ficar enjoada,
não te rias, não tem piada
ria-me porque não queria sentir o sabor do abandono.
14h52
Retiro a roupa da mala, pouso a máquina fotográfica na mesa. O João pergunta-me se quero ir a algum lado antes do concerto. Gostava de visitar aquela livraria no príncipe real, a ideia entusiasma-me. Olho novamente pela janela. Parece-me tudo diferente, há mais bicicletas, há mais estações de metro, e, ao mesmo tempo, parece-me tudo igual, sinto um sabor amargo na boca quando ouço
o comboio suburbano
fertagus
procedente de
com destino a
vai dar entrada
na linha número
efetua paragem em
todas as estações
e apeadeiros.
Vamos antes a pé. Mas é longe, ainda demoramos. Não faz mal. Vamos amanhã, decidimos depois.
***
Apaixonei-me por Lisboa antes de a conhecer. Uma tia-avó crescera ali, e eu habituara-me a ouvi-la discorrer sobre as ruas, as cortinas de renda bordadas com motivos florais, eram feitas assim para que a luz da cidade entrasse nas casas sem dificuldade, e eu acreditava, assim como acreditava que devíamos abrir as portas e as janelas quando trovejava, santa bárbara ajuda-nos se tivermos a casa arejada, assim os relâmpagos entram e saem.
Tivemos encontros fugazes. Os meus pais não aprovaram a decisão de me mudar, mas a teimosia do primeiro amor levou a melhor. Eu sonhava com a cidade-luz, com as suas rugas finas, Lisboa é velha mas esconde bem a idade, as saliências da calçada portuguesa onde se perdem beatas e se guardam esperanças que eu desejava conhecer, decorar-lhe os cruzamentos, perder-me nos cafés, nos museus, nas livrarias, nas bibliotecas, queria que Lisboa me amasse.
Vivi em Lisboa durante seis anos. Recordo os eventos principais: o dia em que pisei pela primeira vez o chão da universidade, a estranheza que senti por ali estar, a concretização do que, na época, era um sonho. A madrugada em que um cartaz publicitário quase me atingiu, vergado pela força do vento. Uma força semelhante que, anos mais tarde, me derrubaria no campo grande, uma mão invisível que se erguia das profundezas do meu corpo e que não me abandonaria jamais: um que vento amaina, mas que nunca sossega. Um concerto na aula magna, os dedos do destino entrelaçados nos fios das marionetas que são os nossos corpos. As viagens de comboio, o regresso à margem sul já noite cerrada, o brilho do Tejo, as caminhadas sozinha no jardim da Gulbenkian enquanto fotografava flores e escrevia histórias inacabadas. O lançamento de um livro de uma escritora portuguesa, os outros escritores dizendo-me que, se quisesse ser escritora como eles, como ela, teria de fazer uma escolha, e há escolhas difíceis, mas os artistas devem fazê-las, é tudo ou nada. Os telefonemas,
o teu gato morreu,
estou no hospital,
o teu tio morreu,
estou no hospital,
temos de mudar de casa,
estou no hospital,
foi-se embora,
estou no hospital.
Começámos por culpar a distância. Vivi no distrito do Seixal durante dois anos, era difícil ficar até tarde, Lisboa teimava que não era perigosa, calúnias, viveste no Porto e também há assaltos e violência, insistia que os seus milhares de habitantes estavam habituados e não se queixavam como eu. Perguntava-me porque não usava roupas mais joviais, tens de te adaptar, olha para as outras miúdas da tua idade, se calhar até são menos bonitas, mas arranjam-se melhor. Sempre que planeava visitar os meus pais, revirava os olhos, os vidros da janela do meu novo quarto estremeciam com a chegada dos aviões. Lisboa não gostava do anonimato, cansou-se da minha alma de provinciana, da minha inexperiência, as ruas no bairro de santos traziam-me o rumor da chuva durante a noite, a luz esmorecia, há ruas que merecem mais a luz do que outras, as ruas que gostam de sapatos de salto alto, de danças espontâneas.
Há uma noite. As luzes dos faróis dos carros no Saldanha e no Marquês de Pombal. Eu, sem casaco, já depois da meia noite, a andar, andar sem parar, queria atravessar a Avenida da Liberdade e parar no Terreiro do Paço, gastar qualquer coisa que os ossos teimam em conter. As memórias que tenho da cidade e da vida em comum abandonam-me, os poros abrem-se, deslizam, uma a uma, pelos braços nus, perdem-se nas saliências da calçada, misturam-se com as beatas e a esperança, trauteiam canções que me perseguem, a certa altura passa um autocarro noturno, penso fugir, fugir das palavras, mas sou cobarde, entro, damos voltas até irromper a madrugada, eu e Lisboa estrangeiras, sentam-se pessoas a meu lado, ignoram-me, saio numa paragem, ando, ando, ando, chego a casa, o dia engole-me.
Lisboa engoliu-me não uma, não duas,
muitas vezes.
16h35
Olho para o telemóvel, faço as contas, quero evitar os transportes públicos para chegar amanhã à faculdade de medicina dentária. Se formos a pé, teremos de passar pelo bairro onde vivi durante um ano. Há um distanciamento nesta realização, cicatrizes que me são indiferentes, esta é uma delas. Incomoda-me menos o que me lembro e mais o que não me lembro. É como se, aquando a separação, a cidade ficasse com o fio de pérolas que me oferecera, as memórias polidas, autênticas, caras. Imagino-a a lançá-lo ao rio, a água engolindo-o. No fundo do Tejo, as pérolas são como estrelas, inalcançáveis, a anos-luz.
***
Lisboa chega-me amiúde em sonhos confusos, a água do Tejo salga-me os lençóis, o corpo inquieto desloca-se como quem se atrasa para o metro. É na segurança do meu quarto que a cidade me visita, provoca-me dores de cabeça noturnas, daquelas que me acordam durante a noite, as mesmas que os médicos dizem ser sinais de alarme.
A princípio, deixei de ler. Deixei de fotografar. Deixei de escrever. Deixei de sair. Não procurei ajuda, um profissional, um médico. Vivia rodeada deles. Mas as pedras não precisam de comunicar para sobreviver.
Lembras-te?
Nunca me lembro. As memórias desses anos caem como chuva miúda. O trauma dá-me sensação de abrigo. Sei que, quando chegar a casa, estarei encharcada de qualquer das formas.
A luz é a adaga do punhal que a cidade usa para nos ferir.
***
O livro de Joana Bértholo chegou-me às mãos como quase sempre os livros me chegam: por acaso. Folheei-o numa livraria, li uma dezena de páginas, já não me consegui afastar dele. A História de Roma. Buenos Aires, Berlim, Marselha. Território neutro. E Lisboa. Aqui, Lisboa não é simplesmente pano de fundo da narrativa. Lisboa está viva, Joana e o ex-namorado são células nas artérias da cidade, transportam palavras e histórias como oxigénio, as cidades alimentam-se de palavras e histórias. Aqui, Joana reflete sobre a maternidade – sobre o não querer ser mãe – e sobre a relação com este homem que a visita.
Este texto não é sobre maternidade, mas podia ser. Leio amiúde histórias ou narrativas autobiográficas sobre ser mãe, talvez porque a noção de maternidade me provoca tanta estranheza. Eu, que tenho uma relação muito próxima com a minha mãe, eu, que estranho a maternidade, estás a ficar velha para ter filhos, a tua sorte é o teu namorado ser mais novo do que tu, nunca é a altura certa, só trabalhas, vais arrepender-te, não há amor maior, é a maior felicidade do mundo, o teu gato não é um filho, sabias, quando me dás um neto, um bisneto, não sejas egoísta.
Mas aquilo que me fez folhear este livro, tirar anotações, escrever nas margens, sublinhar, marcar passagens com aqueles separadores coloridos, foi a dinâmica de Joana nas cidades onde viveu, a forma como discorre sobre a sua existência, como ela escreve,
fui pessoas tão diferentes ao longo do tempo e dos lugares.
Toco ao de leve nas páginas deste livro de capa encarnada. Pergunto-me se eu e Lisboa conseguiremos, alguma vez, voltar a caminhar sem pressa ou ressentimentos, sem
lembras-te,
não te lembras,
não foi assim,
vê se te recordas,
sem memórias. Pergunto-me se, em certa medida, Lisboa é uma parte de mim, a parte que abandonei na entrada do prédio na cruz de pau, no autocarro noturno, no quarto vazio no bairro de santos, no banco puído do fertagus, na estação de almada, num jardim em telheiras, na gare do oriente.
20h48
As bancadas do Campo Pequeno estão quase cheias. Há pessoas com máscaras cirúrgicas, outras com cigarros nas mãos, fumando à revelia. Sento-me num dos lugares da plateia, já não tenho idade para estar de pé tantas horas, justifico a rir. Olha, há nove anos estávamos ali, lembras-te? Está muito calor, há uma pessoa que tosse e abandona o seu assento. Olho para as pessoas, não consigo distingui-las, são como os seixos-memórias, são tantas. O vocalista, Jónsi, aparece, há palmas, há assobios. Começam a tocar. Um amigo avisa-me que está aqui, algures. É uma das pessoas que Lisboa me trouxe e que Lisboa me tirou. Tento encontrá-lo, atravesso os corredores, mas apercebo-me que já não os conheço como antes, manda-me uma mensagem, tive de ir embora, percebo, também tive de me ir embora demasiadas vezes antes. Volto para os acordes. Tento fazer as pazes com Lisboa naquela sala, mas Lisboa não me ouve.
No final do concerto, uma amiga minha dirá que viu pessoas a chorar. O João olhará para mim de soslaio, rir-se-á. E eu rir-me-ei também. Porque, na verdade, não sei se chorei pela música, se chorei pela pessoa que fui, e que, algures, desapareceu.
29 de setembro
1h43
Sento-me para escrever sobre Lisboa. Joana Bértholo parece-me irreal. A História de Roma parece-me irreal. Chego à conclusão que ainda não me sinto preparada para escrever sobre esta cidade. Mas agradeço em silêncio à escritora por este livro. Sei que a Joana não sabe e provavelmente nunca saberá, mas os livros são, às vezes, os escudos com que nos defendemos das adagas de luz. E talvez um dia escreva mais sobre Lisboa.
Talvez um dia.
Mas não hoje.
Hoje, ainda estamos por cá.