Tenho 31 anos, mas sinto-me como se tivesse 60. As pessoas na minha vida podem achar que estou a exagerar, mas estou sempre com dores. Todas as manhãs acordo e sinto como se um trator tivesse passado por cima de mim. Sinto que um autocarro me atropelou. Acordo rígida como um coiote com reumatismo. Tenho um médico, tenho um ex-namorado. Interrompem-me constantemente, aparecem detrás de uma árvore e bloqueiam-me o caminho. Uma dor invisível, impossível de provar. Acreditem ou não.
“Tender Points”, Amy Berkowitz (2019), Nightboat Books
A intensidade da Dor é sempre a referida pelo doente.
Circular Normativa n.º9 da Direção-Geral da Saúde. “A Dor como 5º sinal vital. Registo sistemático da intensidade da Dor.” 14 de junho de 2003.
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Estou deitada numa sala que parece um bloco operatório. Não é medo que sinto, mas vergonha, ninguém me explicou que estaria nua durante o procedimento. Tenho quinze anos, um lençol separa o olhar destas pessoas do meu corpo, do meu coração defeituoso. Uma enfermeira aproxima-se, informa-me que o médico estará concentrado no ecrã à minha cabeceira, onde se desenharão as estradas que pavimentam o meu miocárdio, ou será endocárdio, não sei, faltam ainda vários anos para que aprenda a fisiologia e anatomia do coração. Imagino que o meu coração é uma cidade cuja instalação elétrica precisa de reparações, os postes de eletricidade com os seus fios finos necessitam de manutenção, é difícil o corpo sobreviver sem luz. Alguém prepara o cateter que perfurará a minha femoral, dói um pouquinho, usam diminutivos para realçar que não vale a pena chorar, não vale a pena ter medo, a dor terá uma intensidade inferior a cinco em dez, é como uma picada de um mosquito, está tudo bem, perguntam-me, aceno, sim, observo o ecrã, sinto um misto de fascínio e indignação, custa-me admitir a facilidade com que controlam o meu batimento cardíaco, quando, durante tantos anos, fui eu a controlá-lo, até que, certa noite, me fugiu, como um pássaro assustado. Percebo que algo vai acontecer quando entra na sala um homem que anunciam como sendo o médico especializado em arritmias, nas mãos traz luvas e a promessa da cura. Recordo-me da sua gentileza, usou o meu nome, fez questão que percebesse o que ia fazer, vais sentir dor, o importante é que continues a respirar devagar, para dentro e para fora, devagarinho. Outra vez os diminutivos. Olho novamente para o ecrã, imagino pássaros pousados nos fios elétricos, pombas ou estorninhos, concentro-me nessa imagem, alguém anuncia:
é agora.
Os pássaros parecem sossegados. Não sei qual deles é o primeiro a reparar nas labaredas. O fogo consome a caixa torácica, o pericárdio derrete-se, e é como se o coração ardesse, a dor tão violenta, os alvéolos mirram, os pássaros assustam-se, levantam voo, e eu quero impedi-os, habituei-me a eles, quero gritar, fiquem, não se vão embora, estou arrependida, não conheço outro coração, mas a dor paralisa-me as cordas vocais, respira, respira, devagarinho, respira, respira, vai passar, ergo os braços, tento alcançar um dos pássaros, percebo que é impossível, pertencem ao céu, têm de partir, a dor é insuportável, alguém aperta-me a mão, são segundos que deixam de ser segundos, são horas condensadas dentro das artérias, das veias. Quando a dor cessa, queixo-me do sabor a fuligem, parece que tenho cinzas entre os dentes, na língua, nas gengivas, a enfermeira explica-me que é por causa do sistema vasovagal. Como explicar-lhe que o meu coração é uma cidade que brilha e que os pássaros desapareceram, abandonando as ruas mergulhadas em fumo?
Nessa noite, dormimos em casa de uma tia, em Vila Nova de Gaia. A minha mãe afasta as cortinas para que possamos ver o fogo de artifício. É noite de São João. Observo as luzes incandescentes, atravessam o rio, encobrem as nuvens. Dói?
Não tanto como aos pássaros.
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Dizem que a dor é uma experiência comum, universal. Há dezenas de frases traduzidas em todas as línguas que proclamam a necessidade de sua existência para valorizarmos a nossa humanidade, metáforas com obstáculos que temos de derrubar para chegarmos a não sei onde. A dor é inevitável, o sofrimento uma opção. As recordações que possuo dos momentos mais dolorosos da minha vida estão associadas a momentos tangíveis. São episódios de dor aguda, alguns com minutos, outros com horas. Nenhum se estendeu durante meses, anos ou décadas. Pergunto-me: que memórias teria se essa fosse a minha realidade? Será que as recordações se toldariam, como pontos luminosos no céu, incógnitos, a sombra dos pássaros congelada no horizonte?
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Imagino os pontos dolorosos (“tender points”) como cartas celestes. Os que experienciam a dor têm o mapa do hemisfério norte. Todos os outros têm o mapa do hemisfério sul. Ou vice-versa. Nunca se encontram. A linguagem é comum, o céu é o mesmo, mas o que vemos é diferente.
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Por que motivo nos é difícil aceitar que existem pessoas que têm dor diária ou incapacitante? Há quem afirme que é complicado aceitar o que não se vê ou o que não é simples de objetivar. Como se objetiva o amor? Como se vê o vento? No entanto, ninguém duvida de quem afirma ter sentido o ar gelado da noite ou o amor incondicional pelo filho que sorriu pela primeira vez.
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Há uns anos, descobri que as ablações são procedimentos relativamente indolores. Pode sentir-se desconforto, mas não dor. Desde então, parti ossos, tive diversas infeções, tendinites, e, no entanto, a minha memória mais real, presente e vívida que tenho de dor é a que me acompanhou nesse procedimento. Uma vez, confessei-o a um professor de cardiologia durante uma aula prática, na faculdade. Riu-se. Não acreditou em mim.
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Procuro imaginar a vida com dor crónica. A imagem que me surge é a de pássaros voando pelo céu, sem lugar onde pousar, sem rumo ou intenção de partir.
É uma imagem de desespero.
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A capa do livro “Tender Points” de Amy Berkowitz tem o título repetido, como um mantra, e círculos perfurados em vez de certas letras. Se inclinarmos o cartão da capa, a luz atravessa os círculos e espalha-se pela página seguinte, que é negra. O efeito que produz é parecido ao de um vitral. Ou um céu pejado de estrelas moribundas. Um quarto vazio iluminado pelos faróis de um carro que atravessa a noite.
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Os textos que compõem este livro são pequenos, reflexões líricas, fragmentos de poemas. Amy tem 31 anos e sente que tem 60. As suas comparações são com veículos: o corpo foi atropelado por um trator, o peso dum autocarro sobre os ossos, os músculos, a pele. Jorge de Sousa Braga escreveu, num dos seus poemas, que, aos quarenta, transformamo-nos numa
pomba
com uma das asas ferida
condenada ao mais terrível
pedestrianismo.
De alguma forma, sou atraída pela linguagem dos pássaros. Mas os pássaros também sentem dor. As asas são falíveis. Os bicos quebram-se. As patas também.
Que faria um pássaro com dor crónica? Abandonaria o impulso migratório, procuraria o refúgio do ninho, ignorando as cigarras que gostam de troçar com os outros animais, ou voaria em linha reta, como a linha de fumo que um avião deixa no céu, até que o cansaço o obrigasse a cair,
cair,
cair,
cair.
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Há um episódio que me vem à memória. Estou no consultório, há papéis espalhados pela mesa, um esfigmomanómetro, um termómetro, dezenas de canetas, um ecrã de computador, um agrafador partido, outro intacto. Explico o diagnóstico à senhora que tem as mãos pousadas nas coxas, o casaco apertado no pescoço. Já desconfiava, responde-me. Chora. Percebo o meu erro imperdoável. Onde estão os lenços? Procuro-os, ofereço-os. Pergunto-lhe o que lhe vai na cabeça naquele momento,
medo que não acreditem em mim.
medo que deixe de conseguir fazer as minhas coisas.
o que posso fazer?
Conversamos, discutimos planos, agendamos uma nova consulta, despedimo-nos.
Porque continuo a ouvir a pergunta
medo que não acreditem em mim
uma e outra vez, como uma rima infantil, um poema de brincar?
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Amy interessa-se pela linguagem usada na dor crónica e em certas patologias, na utilização do feminino, como se a dor pertencesse ao reino das mulheres. Um tema que é analisado com mais detalhe em “Ill Feelings”, de Alice Hattrick. Em “Tender Points”, existem sucessões de imagens: memórias de trauma, de incapacidade, de incompreensão.
As páginas do livro lembram-me lençóis, e cada palavra é um ponto doloroso que fica gravado no colchão. Há uma frase em “Ill Feelings” que me vem à memória quando folheio as páginas de “Tender Points”:
Porque quereria alguém estar doente quando estar doente é tão pior do que estar bem?
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Existem grupos dedicados ao estudo da dor e das múltiplas doenças que se manifestam com dor crónica. Há consultas de dor, fármacos antigos e modernos, terapias, umas mais consensuais do que outras, há mestrados, doutoramentos, cursos. Há muitas narrativas na primeira pessoa do que é experienciar dor diariamente, a maioria delas em inglês, que nos permitem entrar no mundo de quem vive, sente, trabalha, dorme, almoça, janta, brinca com dor. São livros como o de Amy Berkowitz que nos relembram que a empatia é uma das peças fulcrais na compreensão da vivência da dor crónica, sobretudo em doenças como a fibromialgia e o síndrome de fadiga crónica.
Há um espaço na minha estante dedicado a estes livros. São como cartas celestes que tento interpretar. Gostava que estas narrativas fossem mais acessíveis, traduzidas em português, divulgadas. É preciso questionar para tentar compreender. É preciso, é urgente ler.
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De repente, lembro-me duma crónica de José Luís Peixoto que começa assim:
Zé Luís, nunca te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli.
Penso:
Teresa, lembra-te: nunca sabemos que estrelas um dia irão derramar a sua luz nas nossas casas, que pássaros nos visitarão e abandonarão. Lembra-te das estradas com fuligem e cinza, lembra-te dos pássaros.
Lembra-te.