Alguém pede permissão para mudar de canal. É hora de almoço, abrem-se os recipientes com a comida. Um ovo rebenta dentro do micro-ondas, é preciso limpar a gordura encrustada para que o peixe não ganhe o sabor da carne e vice-versa. Olho para as batatas ressequidas no prato, misturo-as com o azeite e os brócolos, concordamos que é melhor mudar o programa, ninguém quer ouvir três ou quatro apresentadores debater sobre pais e mães que matam filhos, filhos que roubam mães e pais, professores que assediam alunos, facadas em discotecas, facadas em ruas, facadas em todo o lado. Chove muito, mas Braga é o penico do céu, é normal, o pior são os esgotos, os buracos no asfalto, ruas intransitáveis, cheias de lama, e nós a pagar os aviões, os bancos. O cheiro da pescada cozida impregna a copa, alguém aponta para o ecrã,
olhe, não é a sua terra?
Uma mulher com galochas abana os braços que parecem não lhe pertencer, abandonados numa dança cansada, é um desespero, diz, trabalhamos uma vida e vêm as cheias causar prejuízo, é assim todos os anos. A imagem muda, a ponte romana em grande plano, depois as caldas, a água lambendo os passeios, o campo de ténis, o parque infantil. Fecho o recipiente da comida, avisam-me que o motorista chegou, hoje temos duas consultas domiciliárias. Entramos no carro sem pressa, não há guarda-chuva que nos proteja da água impiedosa. Então, quando foi a última vez que foi à sua terra, pergunta-me o motorista. Respondo algo vago, antes do natal, já não sei bem quando foi.
E quando volta?
Abandonamos a estrada principal e enveredamos por caminhos de pedra, os campos cultivados e por cultivar mancham a terra de várias tonalidades de verde, amarelo e laranja. Há casas modernas, casas decrépitas e casas abandonadas, um manto de retalhos que não imaginava que existisse a pouca distância da cidade. Ao longe, o rio. Sei que está ali, e isso, de certa forma, reconforta-me. Sempre vivi em cidades com rios, fazem-me falta, da mesma forma que o mar faz falta a quem se habituou a observá-lo pela manhã, a temê-lo à tarde e a ouvi-lo ressonar à noite. À medida que percorremos estes campos, apercebo-me que procuro, nesta paisagem, algo que me recorde a da minha terra, como se enfiasse os dedos na terra e escavasse até encontrar raízes, as finas ligações invisíveis que nutrem as almas das árvores. De vez em quando, noto um cheiro a fumo, a brasas, e isso transporta-me para a infância, para a aldeia perdida dos meus avós, para as festas da cidade.
E quando volta?
A pergunta fica tatuada na pele, debaixo da roupa, como versos invisíveis que carrego para todo o lado.
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Até quando pertencemos a um lugar?
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Em 2018, escrevi, neste blogue, um artigo sobre os livros que consolidaram a minha decisão em tornar-me profissional de saúde, como se os livros fossem as vigas que suportam o que Susana Moreira Marques designa como “aquilo a que os antigos chamavam alma.” Não voltei a atualizar esse artigo, mas, se o fizesse, sei que “Agora e na Hora da Nossa Morte” figuraria entre os selecionados, a sua capa roxa entre as restantes lombadas coloridas. Quero acreditar que não é coincidência que a minha cor preferida seja a mesma que foi usada nesta edição da Tinta da China.
É estranho imaginar que muitos dos livros que me inspiraram a escolher a especialidade de medicina geral e familiar sejam os que abordem os cuidados paliativos. Não exerço funções numa equipa que presta estes cuidados, não tenho formação específica (apenas generalista) nesta área. Mas, se “Ser Mortal”, de Atul Gawande, se revelou uma celebração da vida, um reconhecimento de que o ato médico vai muito mais do que curar, “Agora e na Hora da Nossa Morte” é um retrato da vida e da morte numa região que procuro conservar na memória. Com este livro, Susana Moreira Marques contribui para preservar a memória coletiva de estradas estreitas, paisagens, montes, montanhas, planaltos e, no centro, as pessoas, os transmontanos. Na primeira parte, “Notas de Viagem sobre a Morte”, a autora escreve sobre a vida, a morte, os profissionais de saúde, os doentes, as pessoas. Escreve também sobre a região. As aldeias de Trás-os-Montes parecem abandonadas, há um isolamento palpável, diferente daquele que as pessoas percecionaram na pandemia, um isolamento entranhado nas roupas escuras, no granito, nas casas frias, nas mãos sobre os lenços que escondem cabelos prateados. Escreve sobre quem pousa as mãos sobre regaços cansados em alpendres vazios e sobre os profissionais que visitam esses alpendres, levando medicamentos, conselhos, palavras e silêncio, porque saber ouvir é, como sabemos, mais do que estar calado.
“Agora e na Hora da Nossa Morte” é um livro real, escrito com uma sensibilidade ímpar. Sempre que o releio, encontro uma frase que, antes, me passou despercebida, ou descubro novos sentidos, faço novas interpretações. Às vezes, releio as histórias do senhor João e da dona Maria, da Elisa e da Sara, da Paula. Penso, então, nas Paulas da minha vida, nos senhores e donas de tantos nomes, nas Elisas, nas Saras. É difícil não questionarmos se devíamos ter feito mais. Se o que fazemos é suficiente. Volto às suas histórias como quem volta a casa. Volto porque procuro respostas e porque preciso de renovar perguntas.
Volto porque voltamos sempre aos livros que nos ajudam, aos livros das nossas vidas.
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No verão, quando os dias são longos e o desaparecimento do sol me acompanha no caminho de regresso a casa, tento conduzir mais devagar. Abro a janela, coloco um CD no carro (sim, ainda sou dessas pessoas, as que acumulam capas de álbuns partidas, discos trocados, a personificação da desorganização musical), escolho a “Posing for Cars” dos Japanese Breakfast ou a “Sun Forest” de Nick Cave and the Bad Seeds e ponho-me a olhar o céu arroxeado, um céu semelhante ao que Susana Moreira Marques descreveu. E a resposta vem-me com clareza, as palavras crepitam na garganta fechada, o corpo parece insuficiente para conter todas as impressões.
Até quando pertencemos a um lugar?
Até que a morte nos separe.