Sou uma má filha.
Deixemos a ideia repousar, como uma panela de arroz no fogão, a mesma que a minha mãe tapa, queixando-se que não sabe fazer arroz simples,
só sei fazer arroz de tomate,
de frango,
de grelos,
porque é que será tão difícil fazer arroz assim, simples?
É tão difícil, a simplicidade.
***
Quando Se levanta, ainda muito cedo, arriscando que as últimas raposas lhe subam às varandas e saltam janelas adentro, Deus deixa as portadas para trás e recebe o primeiro sol, outra vez acreditando que ainda vai acontecer de cada um de Seus filhos e cada uma de Suas filhas dizerem Seu nome inequívoca e alegremente. De pensar nisso, Deus chora e, distraído, chega a cantar. Quem passa perto, bem escuta. Se Ele se dá conta, como as mães, canta ainda mais alto, desimportado de desafinar.
“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe
***
As mãos são a primeira coisa que recordo quando evoco a memória do corpo da minha mãe. A minha mãe embrulha-se no casaco cosido com fios de lã grossos, que tanto fazem lembrar as samarras alentejanas penduradas na feira dos santos, o teu avô usava um igual, repete todos os anos, quando passamos por elas. Esconde o rosto do frio, está sempre frio nesta terra costurada com nevoeiro, as suas bainhas bordadas com as luzes dos faróis dos carros que atravessam as montanhas, é preciso abandonar os montes para trabalhar. É o que a minha mãe pensa, mas não diz. Diz antes bom dia antes que o sol apareça, os colegas esfregam as mãos, é cedo, sempre cedo para quem não quer chegar tarde. Todos são professores, e todos trabalham a muitos quilómetros de distância da terra onde acordam e onde se deitam, mas não onde vivem, porque saem de madrugada e regressam quando a noite já pousou no mundo.
A minha mãe deixa que os colegas entrem e se instalem nos bancos do carro. Senta-se onde lhe mandam, no meio, o corpo da colega à esquerda tremelicando, irra, que frio está, o da direita com o coração batendo lentamente, procurando conservar o calor. O motor ruge, protesta, procura-se desembaciar os vidros, ligar o aquecimento, qual aquecimento, a chauffage, brada um dos colegas, riem-se, é preciso rir para nutrir a resiliência. Alguém se esquece de sintonizar a estação de rádio, os locutores alegam cansaço, naquele tempo não existiam comediantes que trabalhassem tão cedo, ou, se existissem, ninguém se recorda. A minha mãe recorda-se, sim, da paisagem, o granito empilhado nos montes, a desolação da ausência acentuada pelos primeiros raios de sol que pousam nas nuvens, lá em baixo, parece o mundo visto lá de cima, do avião, só que a minha mãe não sabe, faltam tantos anos para que entre pela primeira vez num avião, para que observe o mar de nuvens, tão irreal como verdadeiro. Naquele dia, a minha mãe não pensa em aviões. Pensa no jantar, na sopa que é preciso fazer, na menina no jardim de infância, questiona-se se a sogra não se terá esquecido de ajudar a vestir a filha, que vergonha, lembra-se da chamada recebida na escola, lá em Cabeceiras de Basto, bom dia, desculpe, a sua filha hoje só veio com as meias-calças e a camisola, esqueceram-se do vestido, a vergonha, meu Deus, a educadora rindo-se, meu Deus, Jesus santo, desculpe, risos, mais uma história para contar quando a menina for crescida.
***
Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus Filhos e haverá de buscá-los eternamente.
“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe
***
As mãos da minha mãe têm veias tortuosas desde muito cedo. É o que ela diz quando as observa. As pontas dos dedos tacteiam as manchas da cor do café com leite que lhe salpicam a epiderme. São mãos de quem trabalhou no campo e de quem as mergulha na lixívia. As veias parecem as estradas que, ainda hoje, a conduzem até à escola onde trabalha, a cerca de setenta quilómetros da cidade onde vive. São como os caminhos da aldeia, talhados em pedra, onde a mula do teu avô se punha teimosa e rosnava queixumes. Já te contei que o teu avô era carpinteiro? E que, mesmo vivendo na pobreza, conseguiu que todos os filhos estudassem? O orgulho do meu avô é o orgulho da minha mãe, transmitido entre gerações como a Bíblia sublinhada.
A minha mãe roda o pulso direito para mostrar o resto das manchas, mas não roda o esquerdo. Não consegue. Está congelado, como as estalactites das histórias e dos contos de fada. Se o forçar, parte-se.
***
Ninguém sabe precisar com exatidão as horas em que tudo aconteceu, as últimas palavras pronunciadas, os sons que se escutaram. O carro está quente, faz calor, mas é um calor bom, como aquele que nos recebe quando entramos numa cama gelada, acariciada por um cobertor elétrico, ou quando nos aconchegamos em cobertores acabados de passar a ferro. Os olhos fecham-se, todos dormem num sono que parece mágico, o carro deixa de ser uma máquina de transporte terrestre e passa a ser uma máquina de fazer destruição, queda livre, o carro deixa de ser carro para ser avião, as nuvens lá em baixo, mas um avião sem asas não sabe onde pousar, e não há Deus nestas horas, dirão uns, ou, dirão outros, foi Deus que os salvou da morte certa. Se Deus escreve direito por linhas tortas, o carro, que devia ter virado na curva, seguiu a direito, quebrou a cerca de proteção e deslizou ponte abaixo, vinte e cinco metros contraídos num segundo. E, depois, a escuridão.
***
Imaginei que cair ao fundo da ilha fosse como adentrar as vísceras de Deus ou do diabo.
“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe
***
Mais tarde, haveriam de me levar ao hospital. Retenho pouco desse momento que, para os que me acompanharam, foi solene. O corpo da minha mãe, irreconhecível. As mechas de cabelo coladas ao rosto inchado, rosa, como os flamingos que Felicíssimo vê na ilha da Madeira. O corpo da minha mãe era um animal em peregrinação, parte dele desabitado, sem memória, sem consciência; a outra parte em constante trânsito, talvez ainda voando sobre a ponte de Cavez, que bonitas são as nuvens. Creio que a minha mãe sonhou as nuvens. Não há nuvens na ponte de Cavez, só o rio Tâmega correndo, indiferente às preces humanas. Mas, naquele momento, também a mim me parece que sonhei a minha mãe. Não lhe reconheço o rosto, o ombro deslocado, as pernas costuradas, as costelas partidas.
Reconheço-lhe, sim, as mãos. O cheiro a lixívia misturado com laranjas acabadas de descascar. As veias tortuosas, com manchas de café com leite. As mãos de Deus. Deus na escuridão.
***
E a minha mãe chorava dizendo: Deus te abençoe, meu filho. Estava tremendo como se tremesse por mil anos, e eu supliquei que se alegrasse. Então me abraçou.
“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe
Não tenho irmãos. Não tenho irmãs. Não sei quem quis que não tivesse. A minha mãe, quando ainda acreditava em Deus, dizia que foi obra Dele. Deus não quis. Às vezes, sofro por não os ter. Mas o sofrimento é um pecado, porque é egoísta, e Deus não haveria de gostar. Porque, talvez assim, não fosse uma má filha, daquelas que abandonaram a terra, que deixaram a mãe na cidade onde ela a pariu. Talvez assim não sentisse a culpa de não telefonar tanto como devia. Porque a mãe fez tantos sacrifícios. Mal os flamingos levantaram voo do seu rosto, já ela regressava à escola, aos meninos e meninas, às letras e à matemática. É preciso que os buzicos, diria a família do meu namorado e as personagens de “Deus na Escuridão”, aprendam as letras e os números, porque a vida não espera por ninguém.
Sou uma má filha porque quis partir. E a minha mãe deixou-me ir. É preciso ser algo parecido a Deus para deixar os filhos partir. “Eu deveria saber amar tanto que aceitasse a ausência.” Mas eu não sabia, naquela época, que Deus é mais parecido às mães do que aos pais. Sou uma má filha porque não rezo como devia à minha mãe. Às vezes tenho palavras duras para com ela. Sou como as lapas que pavimentam as rochas, com o corpo escondido na pedra, o rosto voltado para as entranhas do mundo. O sal arranha-me a pele, flagela-me, sabe que peco, que pecados há muitos na terra, mas também no mar.
Sou uma má filha, repito. Mas tenho orgulho na minha mãe. Ainda hoje, levanta-se todos os dias, embrulha-se no casaco de fios de lã, entra no carro e viaja até Cabeceiras de Basto. A ponte de Cavez existe, o rio Tâmega existe, as crianças existem, a necessidade de as ensinar existe. Talvez todos sejamos maus filhos e más filhas para um Deus que nos abraça, mesmo com ossos partidos, mal consertados, um Deus que nos viu partir, um Deus que recolhe os escombros do nosso abandono como quem procura tesouros na areia e os exibe no parapeito da janela, o lixo transformado em histórias. Tudo, um dia, deixará de existir: os nossos olhos, a nossa pele, os nossos cabelos, as nossas convicções, as nossas certezas. E o mundo, esse, continuará sem nós. Só a quietude permanece - ela e as mãos da minha mãe.
Nota: “Deus na Escuridão” é da autoria de Valter Hugo Mãe. O livro foi publicado pela Porto Editora em janeiro de 2024.