My memory begins with my anger.
― “I Who Have Never Known Men”, Jacqueline Harpman
Sonho com muitas coisas, mas nunca sonho com o momento do abandono.
(Nota: este texto aborda temas relacionados saúde mental.)
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Nos meus relatórios, o lugar retratado é sempre escuro. Uma cave clandestina num estabelecimento escondido numa rua pouco movimentada, um quarto empestado pelo suor, tabaco e álcool. Há sussurros espalhados como lixo amarfanhado na calçada, alguns em galego, outros em português, soltam-se e desfazem-se no chão. Nestes lugares, existem homens - na minha história, estes homens não têm nome, são anónimos, contrario a necessidade de caraterizar cada personagem e as regras da escrita. Não me interessam as motivações, as biografias, as fisionomias, nem sequer o número, quantos são, que idade têm, de onde vêm. Não sou Deus, não interferirei no curso dos acontecimentos. Se fosse uma entidade divina, também não o faria. Estes homens estão por sua conta. Como eu.
Desço as escadas da cave, sento-me ao lado destas pessoas, que não reparam em mim. São as suas mãos que me interessam. São mãos comuns, com músculos, tendões, calosidades, verrugas, manchas de tinta ou gesso, unhas rentes, unhas compridas, veias salientes, depósitos de ácido úrico, alianças apertadas, artroses incipientes, tatuagens desbotadas. Seguram cartas, dados, dinheiro, cortam baralhos, trocam raspadinhas, lançam números pares desejando ímpares, os dedos tremem, outros tamborilam, transpiram, batem na madeira, três vezes para afastar o azar, duas para acenar, uma para gritar. As mãos são as personagens principais desta história, são o epítome do abandono, os escombros da humanidade desfeita. Algumas são bonitas. Há beleza na podridão humana.
Ninguém fala, mas o barulho é ensurdecedor. Aguardo que surjam os primeiros sintomas. Pelas minhas contas, falta pouco.
Primeiro: uma tremura tímida nas falanges. Segundo: um formigueiro, sim, caros colegas, metafórico ou real, isso interessa? Usem a imaginação, por favor. As formigas surripiam-se-lhes das unhas, contornam o sabugo e caminham pelo dorso da pele, seguem os vasos sanguíneos, detêm-se nos pulsos, coçam-se nos pelos grossos, avançam até ao cotovelo, atingem o ombro, escalam o pescoço e inserem-se nos pavilhões auriculares. De vez em quando, um destes homens leva a chave do carro à orelha, coça-se, mas as formigas, habituadas a este automatismo, desviam-se e sobrevivem. Terceiro: a pele greta, a epiderme quebra-se e enche-se de bolhas que, com o movimento, rebentam, a água escorre e pincela as cartas, as espadas e os paus são os primeiros naipes a desaparecerem, o sangue escorrendo pelas cadeiras, empapando-lhes as roupas, os ouros e as copas perdem os contornos, esbatem-se, os números confundem-se, destas mãos criam-se oceanos, não são necessários cajados para dividir o mar. Quarto: o sangue, misturado com o edema, lambe-lhes os tornozelos, alguns destes homens recordarão, por breves instantes, a praia, os dorsos vergados e cravados de areia, esquecerão a cadência da respiração. Quinto: as formigas abrigam-se no couro cabeludo, nas clavículas, nos canais auditivos, observam as companheiras afogadas. Não se perguntam por que motivo os homens continuam a jogar. Afinal, já estão mortos. Apenas as mãos lhes sobrevivem.
Mentiria se escrevesse que sou indiferente a esta peste. Mas, tal como estes homens, eu, que nunca conheci o terror da morte, escolho ignorar os estertores da miséria. Tento ser racional, analítica, a ciência comanda-me o discurso. Sou atraída pelo movimento das mãos. O corpo, inerte, vive através daquelas mãos que nunca sossegam. Se, algum dia, abrirem a porta e encontrarem os corpos intumescidos destes homens, reparem nos membros superiores: os dedos procurando moedas para raspar, cartas para empilhar. Não são os olhos que veem - são as mãos.
Sei que é hora de partir. Um dos homens retira a aliança e coloca-a no centro da mesa. Já não deve ter trocos, e o ouro sempre vale alguma coisa. Escrevinho no meu relatório a forma e a dimensão do anel, é preciso registar tudo. O rosto do homem a quem pertence o objeto vendido tem ainda os olhos abertos, as pupilas dilatadas são uma lua cheia num céu encarnado, onde os rastos fumegantes dos aviões se transformam em capilares ingurgitados.
Anoto tudo, exceto o que sinto. É uma das regras deste trabalho. É preciso cumprir.
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Devemos olhar a realidade de frente mesmo quando ela é horrível; ela, a realidade, não vai desaparecer só porque recusamos vê-la.
― “As Três Mortes de Lucas Andrade”, Henrique Raposo
É possível escrever-se sobre o abismo. É possível escrever-se sobre caves contaminadas por bolor, a peste que trepa as paredes não tocadas pelo sol. A pergunta que se deve colocar não é se conseguiremos escrever sobre isto. E se, quando terminarmos, seremos capazes de desligar o computador, pousar a caneta, fechar o caderno, subir as escadas e fechar a porta, deixando os mortos viver.
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Antes dos relatórios, existiu a esperança.
A esperança foi o que motivou as mulheres encarceradas na história de Jacqueline Harpman a subirem as escadas que as levariam para outra prisão, um mundo impossível de escapar, sem memória da vida que outrora levaram. Estas mulheres escolheram como queriam viver e morrer. Também as personagens que povoam a narrativa de “As Três Mortes de Lucas Andrade” escolhem como vivem e como morrem. “A esperança é a bondade enquanto escolha prática.” O que determina, porém, essas escolhas?
E quem destrói a esperança?
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Regresso a casa, cumprimento os gatos, dispo a bata e preparo café. Sento-me, descalço os sapatos, massajo as articulações, que crepitam à passagem dos dedos. Folheio um dos romances empilhados na torre de livros que teima em crescer. Tenho, à mão, as folhas que uso para os relatórios. Serei precisa, sublinharei algumas passagens, escreverei à mão notas, reflexões. Afio o lápis, sou das que que não gosta de manchar as páginas com tinta. Mas não o faço. Em vez disso, a porta da cave abre-se, primeiro é um sussurro, depois guincha. Desde que habito esta moradia, nunca usei a cave. Lembro-me das sombras do romance “Caruncho”, de Layla Martínez. Mas a minha casa não é a mesma da minha infância nem da adolescência - mudei-me inúmeras vezes, e não conheço os armários e baús que povoam esta. Estou certa, porém, que, se fechar os olhos, recordarei as paredes de outra casa, a segunda, os gritos cravados no estuque, as sentenças ali proferidas, mas, sobretudo, recordarei a ausência, o abandono também é uma personagem principal nos romances. Os objetos desaparecendo, um por um, vendidos, roubados, pilhados, oferecidos, partidos, esmigalhados. E, depois, a aflição. Existe um certo tipo de aflição que corrói o corpo humano, que comprime as costelas e absorve o ar dos bronquíolos, uma aflição maior do que os pulmões, o coração, a faringe, a laringe, as cordas vocais. Essa aflição nunca mais desaparece - mingua, como um bolo sem fermento, houve um tempo em que julguei que, se vendesse bolos suficientes, eliminaria as dívidas, os créditos, os telefonemas, os julgamentos.
O problema, caros colegas, é que existem vários tipos de peste. A pestilência do dinheiro, por exemplo, não é contagiosa; é viciante. É pena que não venha nos compêndios médicos.
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A cave abriu-se. Alguns livros fazem isto, abrem portas que julgávamos perpetuamente encerradas.
Em “I Who Have Never Known Men”, os homens que povoam aquele mundo estranho e singular, por motivos alheios à narradora, desaparecem. Não sabemos por que razão estavam no subsolo, vigiando quarenta mulheres, impondo regras que, aos nossos olhos, são rígidas, aleatórias, algumas estapafúrdias.
Há dias, ouvia numa série televisiva: “escolhemos perdoar não pelos outros, mas sim por nós próprios.”
Não sei se isso é verdade. Não há dados científicos que o comprovem.
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do meu corpo, qual foi a razão para que a morte
e a solidão começassem? a doença, dizia alguém
tão longe. a doença, a doença, repetia tão longe.
― “A Casa, a Escuridão”, José Luís Peixoto
Dirijo-me à cave. Deixei o livro, o lápis e os relatórios em cima da mesa. Desço os degraus, que rangem à minha passagem, cerram os dentes, há neles uma espécie de raiva latente, como o calor que os muros exalam numa noite de Verão. Descubro que, apesar de mergulhar na escuridão, ainda consigo ver - é preciso não esquecer de registar o fenómeno. Há um corrimão, que não uso. Nesta cave, não existem pessoas, animais, objetos. Está vazia. Estou habituada às caves povoadas, a casas abarrotando de gente, gestos, corpos, sangue, restos. Viro-me, desiludida, e encaro a porta escancarada, que deixa entrever a luz. Descubro, porém, que a cave é confortável. Parece fresca no verão e quente no inverno. Respira-se melhor aqui. As paredes não estão manchadas, não há fendas, tinta desbotada, marcas de humidade, cheiro a mofo. O silêncio agrada-me, é puro, o isolamento deve ser bom, não é como o que forra o meu quarto, ouço o vizinho a urinar, portas a fecharem-se, o sinal sonoro das mensagens recebidas pela adolescente que passa as tardes em casa a estudar.
Ah, então é isso.
É assim que ficamos fechados na cave. Não é por imposição.
É uma escolha.
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devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.
os assuntos que julgávamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.
por si só, o tempo não é nada.
― “A Casa, a Escuridão”, José Luís Peixoto
Estou na cave. Não sei quanto tempo passou. O telemóvel ficou lá em cima e, por esta altura, a bateria deve ter terminado. Não como, não bebo, o meu corpo deixou de obedecer às regras da fisiologia humana. De vez em quando, preocupo-me pelos gatos, até que me apercebo que têm uma fonte elétrica com água fresca e um dispensador automático de comida. Estou sentada, observo a escuridão, que me olha de frente. Intriga-me que a cave esteja vazia, sempre achei que os seres humanos guardavam tralha nas caves: caixas de cartão com brinquedos da infância, álbuns de fotografia herdados, conjuntos de chávenas e bules e pratos e facas e garfos e copos, postais ilegíveis com cidades que nunca ninguém visitou. Achava que a escuridão era como as sombras descritas por Ursula K. Le Guin no universo de “Terramar”, gémeas, catalisadoras da destruição. Mas as sombras estão inertes. De vez em quando, lembro-me que devia estar a registar tudo nos relatórios. Mas, na verdade, nem sei que para servem.
A peste é uma coisa estranha, penso. Existem tratamentos, mas poucos são os que os procuram. De tempos a tempos, os familiares descem às caves, abanam os homens ou mulheres que ali se encontram (são quase sempre homens, porém - faz parte das estatísticas publicadas com os dados dos relatórios), recolhem os objetos que as suas mãos continuam a procurar, levam-nos para casa, tiram-lhes os telemóveis, os cartões de crédito, o dinheiro, vestem-lhes fatos, camisas, casacos, mostram-lhes os filhos, gritam, dão-lhes pastas, malas, objetos, conduzem os seus corpos aos seus empregos, tudo para, no meio da noite, acordarem com o barulho dos seus dedos, as mãos que nunca sossegam, os gestos de baralhar as cartas, de lançar os dados, de pressionar botões.
Há quem se salve, claro. A peste não é uma fatalidade. Mas a peste erode, consome, fragiliza. E até as mais imponentes falésias desabam.
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Não há nada que me resgate. Esta não é uma dessas histórias.
Creio que, antes, menti. É uma das premissas dos relatórios - nunca mentir. Perdoem-me, caros colegas, não fiz por mal. Redir-me-ei, prometo.
Há uns anos, tive um sonho. Conduzia ao som da música de Max Richter, a estrada vazia alongava-se no horizonte noturno. Eu não estava sozinha - do lado do passageiro, existia um homem. Devo ter-lhe reconhecido o rosto, porque a sua visão me causou um profundo sofrimento. Falava comigo, usava óculos de sol, apesar da noite densa, interrompida apenas pelas luzes da cidade anónima. De súbito, apercebo-me que há um escorpião no carro. Entro em pânico. Se continuar a conduzir, o bicho, assustado, irá atacar, essa é a minha certeza. Não sei o que é preferível, morrer devido ao veneno do invertebrado ou à custa dos ferimentos provocados por um acidente de automóvel. O homem a meu lado sorri, o que me causa repulsa e indignação. Quero gritar-lhe que estamos prestes a morrer. É então que escolho. Estamos quase a entrar num túnel, viro o volante, batemos, os vidros estilhaçam-se e cortam-me o rosto, os pulsos, as coxas, o meu corpo é projetado contra o volante, os braços ensanguentados sobre o capô, o rosto virado para o passageiro que, ainda sorrindo, me revela que o escorpião o atacara, que não me preocupasse. Quero gritar-lhe que nada disso é relevante, morreremos ambos de qualquer das formas, como na fábula do escorpião e do sapo, mas ele não me responde, o seu semblante permanentemente congelado naquele sorriso, os olhos abertos fixando-me.
Contei este sonho a uma pessoa, que não lhe atribuiu importância, os sonhos não significam nada, são produtos da mente, toxinas que o nosso cérebro expulsa. Tentei explicar-lhe que a agonia era real, as sombras da cave plantadas no meu corpo, mas penso que não terá compreendido ou escolheu não compreender. Mais tarde, tenho medo de conduzir, estaciono o carro na berma da estrada, recordarei este sonho durante anos, ainda que saiba que não faz sentido, não tem coerência narrativa, não há conhecimento sobre as personagens, não é eficaz nas vendas, ainda que saiba tudo isso é o sonho que quase me destrói.
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I was forced to acknowledge too late, much too late, that I too had loved, that I was capable of suffering, and that I was human after all.
― “I Who Have Never Known Men”, Jacqueline Harpman
Levanto-me, ajeito as calças, subo os degraus. Fecho a porta, pego na bata, coloco as folhas dos relatórios numa mochila e saio de casa. Chamo um táxi. Fora da cave, começo a sentir fome, sede, vontade de urinar, sono. Recosto-me no assento e observo as luzes da cidade, constelações artificiais que seguem o padrão da ordem humana. Peço para sair quando estamos perto do estabelecimento. Calcorreio os passeios desnivelados, chove, as beatas transformadas em barcos velejam rua abaixo, a espuma do detergente usado pelas mulheres para desincrustarem restos de fezes de cão, urina e cerveja lambe os veleiros como a espuma do oceano. Entro no edifício decrépito, contorno as mesas e a televisão que exibe anúncios de chás para emagrecer, abro a porta da cave, desço as escadas, os homens estão nas mesmas posições, os corpos simultaneamente vivos e mortos, a peste sentada à mesa recolhe os seus pertences, incluindo a aliança que um dos homens retirara, a que mesma que eu descrevi com rigor. Os seus olhos continuam abertos, fixos na mesa, as mãos dançantes.
Aproximo-me do homem. Tem um fato vestido, roído pela humidade da cave, a gravata impecavelmente apertada. Lembro-me das gravatas penduradas no armário do meu quarto, oferecidas pela minha avó aquando o despejo, guarda-as, oferece-as, se quiseres, mas não as deites fora.
Há outra regra neste trabalho - não podemos, em circunstância alguma, tocar nos sujeitos. Mas Deus perdoar-me-á se fechar as pálpebras deste homem que foi, em tempos, o meu pai. E, se não for Deus, que seja outra coisa qualquer.
Pois eu, que, afinal, sonhei com o abandono, escolho, hoje, escrever o meu último relatório. E escolho sair da cave.
Porque hoje, pelo menos hoje, a escolha é minha.