De tempos a tempos, sonho com o meu primeiro quarto. Era um quarto comum, de paredes brancas, estantes de madeira com livros infantis e peluches, uma cama com uma colcha colorida. Foi aí que aprendi a cadência da respiração. É muito vívida a memória de, no escuro, pousar o olhar no guarda-fatos e perceber que o coração batia sem rumo, sem ritmo, os pulmões incapazes de acompanhar os órgãos confusos. Algo se estragou dentro de mim, pensei. E era irreparável, esse estrago. Há algo que parte assim que percebemos que não controlamos o corpo, um veleiro que naufraga, a inocência afundando-se. Este foi o início da minha reclusão interior, o confronto com a violência contida no organismo que vive em comunhão com os outros, mas também irremediavelmente isolado, um bivalve incrustado numa rocha.
O sonho mais comum é aquele em que, certo dia, atravesso a avenida, ganho coragem e toco à campainha do prédio, peço a quem agora ali vive que me deixe entrar na casa onde vivi durante quase uma década, onde disse as primeiras palavras, onde comecei a andar, onde vi o meu gato pela primeira vez, não o abraces com muita força, ainda é pequenino, onde recitei as orações que a minha mãe me ensinava na varanda do meu quarto enquanto recolhia a roupa, apressada,
santa Bárbara bendita,
que no céu está escrita,
peço que me deixe ver uma última vez o quarto onde ouvi o som de um tiro, seco, como um trovão, o pânico da minha mãe, a vizinha que me costumava afagar o cabelo, as nossa varandas juntas, como gémeas no ventre, a vizinha abandonando o apartamento, o marido morto, os hematomas escondidos debaixo do avental, a polícia, as sirenes,
com papel e água benta,
livrai-nos desta tormenta.
A recordação desse quarto visitar-me-á em dois mil e vinte, repetidas, incontáveis vezes. A minha mãe conta a história que, naquele dia, éramos três em casa, o meu avô aproveitara a feira semanal para nos visitar. Quando ouviram o tiro, a minha mãe ficou lívida, estarrecida, mas o meu avô, habituado à violência, às guerras, sentiu curiosidade, queria ver o que se tinha passado no outro apartamento. A minha mãe foi a primeira a encontrar a vizinha, ambas chamaram a polícia, e o meu avô, inquieto, queria sair do quarto, mas ali ficou, comigo. A violência só pode existir fora de casa, nunca dentro das nossas paredes, disse. Se deflagra no interior, tens a tua casa destruída.
É nisso que penso quando regresso do trabalho. Estou certa de que fabriquei as palavras do meu avô, a memória nunca é tão minuciosa, o meu avô nunca teve um discurso tão eloquente. As ruas estão vazias, foi decretado o estado de emergência. Quando entro em casa, procuro deixar a violência lá fora. Porque são violentos, esses meses, e serão violentos durante anos. Retiro as roupas, dispo-me, entro no chuveiro, lavo-me, vou para o quarto. Da minha janela, eu e o meu gato assistimos à dança das árvores. Observamos o modo como se enchem de folhas verdes, indiferentes à estagnação que se sente. Porque é isso que se sente, estagnação, a atmosfera eletrizante que antecede
as trovoadas
que no céu andam armadas,
lá na serra do Marão,
onde não haja palha nem grão,
nem meninos a chorar,
nem galos a cantar
nem pessoas que, como a minha vizinha, se veem obrigadas a ficar em casa, a violência presa no interior, a minha mãe sempre me disse que se devem manter as casas abertas para que o trovão entre e saia em segurança, se as fechamos o trovão fica lá dentro.
Altas vozes vão no céu.
Valha-nos a Divindade.
Não sei o que nos vale. Nesses primeiros meses, a vontade de arregaçar as mangas é muita, ainda que a incerteza impere. Nada apagará a recordação de caminhar pelas ruas vazias, como se estivéssemos a cometer uma infração, ainda que tenhamos o cartão da ordem na carteira, ainda que tenhamos uma autorização que colocamos no carro. O céu parece sempre amarelado, carregado de tempestades. Pedem-nos para fecharmos as portas, para resguardarmos os que precisam de cuidados, aqueles que são frágeis, pedem-nos para vestirmos fatos, usarmos luvas, desinfetante, as minhas mãos enchem-se de cortes e de hemorragias que não estancam, pedem-nos que liguemos às pessoas que estão doentes, assustadas, infetadas, a voz perdendo a intensidade entre acessos de tosse, há sangue hoje, doutora, envio cartas por email, referenciações para o serviço de urgência, penso nos colegas que não dormem nos hospitais, no cansaço, ligo no natal, no ano novo, na páscoa, nos aniversários, tudo isso perde o significado, às vezes rimo-nos, feliz natal, às vezes choramos, há sempre alguém que não atende o telefone no dia seguinte, tememos saber a razão.
Sonho amiúde com incêndios. Lembro-me das palavras de José Luís Peixoto misturadas com as de Anabela Mota Ribeiro,
Compreendemos que deflagra um inocência que nos impede de continuar, que engole os prédios, as ruas, as árvores, as pessoas.
O som da respiração enchia o quarto. Os meus pulmões, fracos, entre as costelas, esvaziavam-se de ar. A escuridão, dentro de mim, em todo o mundo, sufocava-me lentamente.
O livro que mais recordo neste período é “As Aves não têm Céu”, de Ricardo Fonseca Mota. Li muitos outros, antes e depois, mas este foi o que perdurou na minha memória. Sonhava com a sua capa, com os pássaros sem céu. Nós éramos os pássaros sem céu.
Alguns profissionais de saúde definem os piores meses da pandemia COVID-19 como Anabela Mota Ribeiro descreveu em “O Quarto do Bebé”: “tempos de guerra”. E eu que, tal como Susan Sontag, não aprecio metáforas militares, recordo esses meses como a música “Untitled #8 - Popplagið”, de Sigur Rós: a melodia delicada nos primeiros segundos, a esperança, as frases repetidas como um verso até se desbotarem, gastas, como os desenhos que perdem cor nas janelas sujas e cansadas, os
vai ficar tudo bem,
e, por volta do sétimo minuto, o algarismo que carateriza a criação, sete, a voz de Jónsi altera-se, grita, ribomba como os trovões que santa bárbara tenta combater, a bateria irrompe e domina a música, violenta.
Este texto não é um elogio ao papel dos profissionais de saúde durante a pandemia COVID-19. Na verdade, tal como muitos verbalizam - enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos, médicos, assistentes operacionais, técnicos superiores, secretários clínicos, entre outros - não pensamos muito nesses tempos. O livro de Anabela Mota Ribeiro obrigou-me, no entanto, a analisar esses meses. E ela está certa: há violência nessas memórias e na certeza que, quando voltar a acontecer algo semelhante, repetir-se-ão atitudes e que não aprendemos nada, absolutamente nada, pois continuaremos, mal o trovão chegue, a rezar a santa Bárbara,
Santa Bárbara bendita,
Que tens a palma na mão,
Pede a Nosso Senhor
Que não mande mais trovão.
É evidente que “O Quarto do Bebé” é muito mais do que um diário do confinamento. Mas a sua leitura levou-me a gavetas de cómodas que já não abria há muito, como se, nos meus sonhos, voltasse a ser a criança que navega num quarto que já não é o seu, mas que imagina ser, porque se recorda de todos os pormenores, do local onde estava a cama, onde pousaram borboletas peludas durante a invasão dos insetos na década de noventa, onde brincava com um gato que há muito partiu, onde rezou a santos, convencida que, se não o fizesse, o coração dispararia de novo, onde brincava sozinha, onde ouvia a voz amável da vizinha, onde imaginava vir a ser muitas coisas, sem saber que, anos mais tarde, estaria isolada no quarto de outra cidade, com outro gato, uma Teresa distinta de tantas outras Teresas que habitaram, até hoje, nove quartos diferentes, sabendo, no entanto, que se um relâmpago cruzar o céu começará a recitar, inconscientemente,
Santa Bárbara bendita.