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Gatos comuns

October 17, 2024 Teresa Tomaz


As notícias que ficarão gravadas na alma chegam sempre através de um telefonema.

Há telefonemas que se assemelham a tempestades. Anunciam-se, trazem um nome no ecrã luminoso do aparelho. O som que o telemóvel projeta é agudo, o corpo estremece e, de repente, estamos no olho do ciclone. A perda é assoberbante - mas é também o que nos nutre. Alimenta-nos de palavras, que purgamos como a fisiologia nos comanda. E paralisa-nos como veneno.

Escrevo para sair do olho da tempestade. Mas, mesmo quando abandonamos o epicentro da violência, há minúsculos estilhaços de vidro que carregamos debaixo da pele e que sentimos como agulhas, ainda que os médicos decretem que as radiografias não revelaram objetos estranhos, está tudo na nossa cabeça, a dor, a estranheza, e que o enfermeiro execute o tratamento com lentidão, sabendo que há dores que não se expurgam, e o médico nos mande embora com um antibiótico na mão, não vá a ficção infetar.

***

Naquele dia, segunda-feira, sete de outubro, não existiu claridade. A tempestade havia sido anunciada nos noticiários, nas redes sociais e nas bocas dos cidadãos que, em vez de moedas, trocavam lamentos antes de se ouvir o primeiro rugido do céu.

Chamaram-lhe “Kirk”.

Aprendo que há uma lista de nomes para tempestades e ciclones que ocorrem por ano. Criadas em 1953, estas listas são reutilizadas a cada seis anos. Em 2024, “Kirk” é o décimo primeiro da lista. Estudo os restantes nomes. Em 2027, o nome “Teresa” está reservado como décimo nono para os eventos ocorridos no oceano Atlântico. Quando as tempestades são demasiado destrutivas, o nome é retirado da lista e não é mais atribuído.

Pergunto-me como seria se, na realidade, eliminássemos nomes da nossa vida quando são demasiado destrutivos. Talvez, dessa forma, eliminássemos tudo o que nos provoca dano através do exílio de um nome. Em “Um Feiticeiro de Terramar”, de Ursula K. Le Guin, o nome “verdadeiro” das personagens, nome esse que é escondido da maioria das pessoas, torna-as vulneráveis. E, ao mesmo tempo, conhecê-lo é uma prova de afeto, de intimidade. De amor.

***

Encontrámos uma gata abandonada a sete de outubro. Era muito pequena, o seu corpo parecia uma pérola abandonada num esgoto. Foi assim que a vi, em pleno túnel da Avenida da Liberdade, agarrada a uma sarjeta. Tentei apanhá-la, mas a bichana escapuliu-se e escondeu-se nas entranhas do nosso carro. Uma hora e alguns minutos depois, embrulhei-a numa toalha e levei-a para casa.

O gato que adotámos em 2014 faleceu há um ano. A minha mãe, o ser humano mais próximo do animal, carregou o luto como quem se enrola numa manta pesada. Eram muito próximos, partilhavam a cama, a cozinha, as lidas da casa, as lágrimas e as alegrias. Foi o nosso segundo gato. Chamei-lhe Yuki, porque, apesar de não ser branco como a neve, parecia que tinha rebolado sobre tinta branca à nascença. Era a preto e branco, como os filmes que passavam na televisão de madrugada e que nem ele nem a dona viam, adormecidos no sofá. Viveu dez anos, e morreu inesperadamente, após meses com uma doença desconhecida que lhe provocava convulsões e lhe levou quase um quilograma do corpo.

Não pedi à minha mãe que ficasse com a gata. Porém, dadas as circunstâncias, e como temos, em casa, dois gatos que estão ainda a aprender a conviver um com o outro, ela aceitou adotá-la. Talvez seja um sinal, digo-lhe. Um bom ou mau, pergunta-me. E eu repito que é um sinal bom, como uma oração; afinal, as pessoas procuram no mundo peças que o ordenem.

Horas depois, a veterinária pergunta-nos que nome queremos dar ao animal. Chamamos-lhe Libby, porque é o mais parecido que encontramos com “Liberdade”, o nome do túnel onde a encontramos. O resgate conduziu-nos a este momento. A médica insere o nome no computador, formaliza a adoção. Compramos os objetos e utensílios necessários, e eu despeço-me da gata, sabendo que tudo está em ordem, valeu a pena as horas de resgate, digo para mim própria. Como uma oração.

***

Consulto novamente a lista e aprendo que existiu um tufão chamado “Libby”, no Japão, em 1948. Aumentou de intensidade e atingiu o pico no início de outubro. Foi considerado extinto no sétimo dia desse mês.

***

Nori.

O quarto onde escrevo tem uma janela grande, que me permite ver as árvores, os prédios, os carros que estacionam, inadvertidamente, numa rua estreita, o jardim que separa o meu apartamento dos outros. Lembro-me que, certo dia, vi, dessa mesma janela, uma gata a brincar na relva do jardim. Soube logo que era uma gata, talvez pelo seu tamanho, tão pequena, uma mancha negra a trautear pelas gramíneas. Fiquei a observá-la, aninhada, atenta aos movimentos pretensiosos dos melros que, ignorando o pequeno mamífero, debicavam pedaços de bolachas que os estudantes deixam cair.

A partir de então, passei a ver a gata com frequência.

Os gatos de rua têm nome? Sacha, Bimba, Piqui, Luna, Bichana. Os gatos de rua têm todos os nomes do mundo e não respondem por nenhum. Desviam-se das letras como quem se desvia de poças com água estagnada e, se tocados por elas, sacodem o corpo, libertando-as no horizonte. Mas, quando desço a rua, se a chamo com a onomatopeia que a minha avó usava, tal flautista de Hamelin, ela corre até mim, esfrega-se nas minhas pernas como quem diz

demoraste.

Debatemos sobre se devemos ou não adotar a gata. Ordenamos argumentos a favor e contra. O gato que adotámos em 2020 poderá não se adaptar. A esperança média de vida dos gatos de rua é menor. A gata pode ter doenças e transmiti-las ao nosso gato. Pode ser atropelada. Os vizinhos dão-lhe comida e ela parece feliz.

Sushi.

Dedico-me, durante um ano, a alimentar a gata que ronda o apartamento. Não sou a única - existem vários recipientes com comida e água, caixas de cartão com mantas. Dizem-me, enquanto troco a água, que houve quem já a tentasse levar para casa, mas não se adaptou. Pertence à rua, dizem-me. E eu afago-lhe o pelo e convenço-me que é o melhor.

Certo dia, a gata adoece. Os seus movimentos tornam-se mais lentos, o olho esquerdo enche-se de pus, as costelas tornam-se mais visíveis. Não protesta quando a levamos à veterinária. Fazem-lhe testes, retiram-lhe sangue, fotografam-lhe os pulmões. Não há diagnóstico. Damos-lhe medicamentos, estabelecemos um horário para verter as gotas no olho mirrado da bichana, construímos uma casota de cartão que colocamos nas escadas do prédio, somos ajudados pelos vizinhos. Até que, um dia, a sua íris dilata e desmaia na rua, o corpo repleto de lesmas intumescidas.

Eis, então, a morte.

A gata é internada. Alertam-me que a sobrevivência não está garantida. Caminho para casa, observo a folhagem tenra das árvores. Não peço nada a ninguém, apenas a mim própria. Lembro-me que, quando era criança, me explicaram a importância de rezar e de falar com Deus, sobretudo se queríamos que Ele nos escutasse. Mais tarde, na faculdade de medicina, explicaram-me que, se estudasse com afinco e decorasse todas as páginas dos tratados, iria conseguir salvar pessoas. Deus e a ciência pareciam dar ordem à vida - e, em alguns casos, afastar a morte. Bastava ter convicção na repetição.

***

Não dou ordens a Deus. Não trabalho em situações de emergência. Não crio uma ordem através de orações ou de protocolos de atuação imediata. Durante muito tempo, tentarei juntar palavras e formar frases para ordenar pensamentos e emoções.

***

A gata (chamamos-lhe Nori) sobrevive. Formalizamos a adoção enquanto recupero de uma cirurgia. Vem-me à cabeça a expressão “Deus escreve direito por linhas tortas.”

***

As notícias que ficarão gravadas na alma chegam sempre através de um telefonema.

A minha mãe anuncia-me a morte da Libby. Era muito pequena, não sobreviveu a uma infeção. Segundo a veterinária, os gatos de rua, quando são muito jovens, têm vários problemas de saúde. Há desordem no seu telefonema. O luto é uma desordem. Vem-me à cabeça as palavras da realizadora Catarina Vasconcelos. Nunca percebi as fases do luto de Elisabeth Kübler-Ross. Essas fases sempre me falharam. Talvez isto seja uma tentativa de ordenar o que é impossível de ser ordenado.

Digo, para mim mesma, que já sofri coisas piores. Pessoas que morreram, animais que partiram e que estiveram mais tempo connosco. A Libby viveu pouco tempo. Mas, algures numa aurícula, ficou tatuado o resgate da gata que chegou a ter um nome, em plena tempestade “Kirk”. Dizem-me que o importante foi não ter morrido na rua, e sim sem sofrimento, num lugar quente, confortável. Sinto-me hipócrita, reles. Há tantos seres vivos que morrem diariamente, que para mim são anónimos, mas cujas vidas importaram, tiveram um nome. O que fiz eu por eles? Nada.

Os dias continuam a passar, ordenadamente, primeiro sexta-feira, depois sábado, depois domingo. O sofrimento continua. É um pano de fundo num outono quente.

***

Estou sentada numa cadeira da livraria, prestes a assistir ao lançamento de um livro de poesia. Ouço a escritora que se prepara para apresentar o autor da obra, que escreve “sobre a perda”. Sobre a identidade. Sobre a memória.

Não consigo prestar atenção à sessão. Mal chego a casa, abro o livro de Joana Estrela, “Gato Comum”. As páginas amarelas parecem ondas, perderam a sua aparência lisa, porque a humidade se entranhou nas ilustrações e nas letras durante a primeira leitura. O luto é um lugar húmido, penso, capaz de vergar qualquer objeto. Pouso o livro na mesa e releio-o uma segunda vez.

Aliso a toalha, os seus vincos lembram-me vasos sanguíneos tortuosos, apago-os, uma, duas e três vezes. Há muito que não coloco objetos na mesa, receio que os gatos derrubem jarras, como nos vídeos que povoam a internet, cuja graça é apenas destinada a quem, à distância, se ri com o comportamento felino, repetido em dezenas de segundos empilhados. Mas hoje decido deixar o livro sobre a mesa. Um livro não se parte.

Procuramos uma ordem nos lugares que povoamos. Mas é a desordem que toma parte da nossa existência, povoa os lugares onde vivemos. É preciso aceitar a desordem. É preciso aceitar, digo, quando chego à parte em que o gato da história morre.

***

“Leslie” é o nome da nova tempestade. As ruas da cidade ainda estão repletas de vestígios do “Kirk”: corpos de árvores tombados, caixotes do lixo caídos, folhas e detritos no pavimento, buracos escavados no chão. O trânsito força-nos a entrar pelo túnel da Avenida da Liberdade. Passamos pelo local onde vislumbrei a Libby pela primeira vez. Uma gata de pelo branco e três manchas negras no focinho, a cauda escura. Ronronou quando foi afagada pela veterinária. Brincou com uma pequena bola de tecido quando esperava pelo raiar do dia. Enroscou-se numa manta. Viveu, e depois morreu. Tal como uma tempestade. Tal como uma vida comum. Como um gato comum. Como tantos gatos comuns.





















































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Eu nunca sonhei com o abandono

June 5, 2024 Teresa Tomaz

My memory begins with my anger.
― “I Who Have Never Known Men”, Jacqueline Harpman

Sonho com muitas coisas, mas nunca sonho com o momento do abandono.

(Nota: este texto aborda temas relacionados saúde mental.)

***

Nos meus relatórios, o lugar retratado é sempre escuro. Uma cave clandestina num estabelecimento escondido numa rua pouco movimentada, um quarto empestado pelo suor, tabaco e álcool. Há sussurros espalhados como lixo amarfanhado na calçada, alguns em galego, outros em português, soltam-se e desfazem-se no chão. Nestes lugares, existem homens - na minha história, estes homens não têm nome, são anónimos, contrario a necessidade de caraterizar cada personagem e as regras da escrita. Não me interessam as motivações, as biografias, as fisionomias, nem sequer o número, quantos são, que idade têm, de onde vêm. Não sou Deus, não interferirei no curso dos acontecimentos. Se fosse uma entidade divina, também não o faria. Estes homens estão por sua conta. Como eu.

Desço as escadas da cave, sento-me ao lado destas pessoas, que não reparam em mim. São as suas mãos que me interessam. São mãos comuns, com músculos, tendões, calosidades, verrugas, manchas de tinta ou gesso, unhas rentes, unhas compridas, veias salientes, depósitos de ácido úrico, alianças apertadas, artroses incipientes, tatuagens desbotadas. Seguram cartas, dados, dinheiro, cortam baralhos, trocam raspadinhas, lançam números pares desejando ímpares, os dedos tremem, outros tamborilam, transpiram, batem na madeira, três vezes para afastar o azar, duas para acenar, uma para gritar. As mãos são as personagens principais desta história, são o epítome do abandono, os escombros da humanidade desfeita. Algumas são bonitas. Há beleza na podridão humana.

Ninguém fala, mas o barulho é ensurdecedor. Aguardo que surjam os primeiros sintomas. Pelas minhas contas, falta pouco.

Primeiro: uma tremura tímida nas falanges. Segundo: um formigueiro, sim, caros colegas, metafórico ou real, isso interessa? Usem a imaginação, por favor. As formigas surripiam-se-lhes das unhas, contornam o sabugo e caminham pelo dorso da pele, seguem os vasos sanguíneos, detêm-se nos pulsos, coçam-se nos pelos grossos, avançam até ao cotovelo, atingem o ombro, escalam o pescoço e inserem-se nos pavilhões auriculares. De vez em quando, um destes homens leva a chave do carro à orelha, coça-se, mas as formigas, habituadas a este automatismo, desviam-se e sobrevivem. Terceiro: a pele greta, a epiderme quebra-se e enche-se de bolhas que, com o movimento, rebentam, a água escorre e pincela as cartas, as espadas e os paus são os primeiros naipes a desaparecerem, o sangue escorrendo pelas cadeiras, empapando-lhes as roupas, os ouros e as copas perdem os contornos, esbatem-se, os números confundem-se, destas mãos criam-se oceanos, não são necessários cajados para dividir o mar. Quarto: o sangue, misturado com o edema, lambe-lhes os tornozelos, alguns destes homens recordarão, por breves instantes, a praia, os dorsos vergados e cravados de areia, esquecerão a cadência da respiração. Quinto: as formigas abrigam-se no couro cabeludo, nas clavículas, nos canais auditivos, observam as companheiras afogadas. Não se perguntam por que motivo os homens continuam a jogar. Afinal, já estão mortos. Apenas as mãos lhes sobrevivem.

Mentiria se escrevesse que sou indiferente a esta peste. Mas, tal como estes homens, eu, que nunca conheci o terror da morte, escolho ignorar os estertores da miséria. Tento ser racional, analítica, a ciência comanda-me o discurso. Sou atraída pelo movimento das mãos. O corpo, inerte, vive através daquelas mãos que nunca sossegam. Se, algum dia, abrirem a porta e encontrarem os corpos intumescidos destes homens, reparem nos membros superiores: os dedos procurando moedas para raspar, cartas para empilhar. Não são os olhos que veem - são as mãos.

Sei que é hora de partir. Um dos homens retira a aliança e coloca-a no centro da mesa. Já não deve ter trocos, e o ouro sempre vale alguma coisa. Escrevinho no meu relatório a forma e a dimensão do anel, é preciso registar tudo. O rosto do homem a quem pertence o objeto vendido tem ainda os olhos abertos, as pupilas dilatadas são uma lua cheia num céu encarnado, onde os rastos fumegantes dos aviões se transformam em capilares ingurgitados.

Anoto tudo, exceto o que sinto. É uma das regras deste trabalho. É preciso cumprir.

***

Devemos olhar a realidade de frente mesmo quando ela é horrível; ela, a realidade, não vai desaparecer só porque recusamos vê-la.
― “As Três Mortes de Lucas Andrade”, Henrique Raposo

É possível escrever-se sobre o abismo. É possível escrever-se sobre caves contaminadas por bolor, a peste que trepa as paredes não tocadas pelo sol. A pergunta que se deve colocar não é se conseguiremos escrever sobre isto. E se, quando terminarmos, seremos capazes de desligar o computador, pousar a caneta, fechar o caderno, subir as escadas e fechar a porta, deixando os mortos viver.

***

Antes dos relatórios, existiu a esperança.

A esperança foi o que motivou as mulheres encarceradas na história de Jacqueline Harpman a subirem as escadas que as levariam para outra prisão, um mundo impossível de escapar, sem memória da vida que outrora levaram. Estas mulheres escolheram como queriam viver e morrer. Também as personagens que povoam a narrativa de “As Três Mortes de Lucas Andrade” escolhem como vivem e como morrem. “A esperança é a bondade enquanto escolha prática.” O que determina, porém, essas escolhas?

E quem destrói a esperança?

***

Regresso a casa, cumprimento os gatos, dispo a bata e preparo café. Sento-me, descalço os sapatos, massajo as articulações, que crepitam à passagem dos dedos. Folheio um dos romances empilhados na torre de livros que teima em crescer. Tenho, à mão, as folhas que uso para os relatórios. Serei precisa, sublinharei algumas passagens, escreverei à mão notas, reflexões. Afio o lápis, sou das que que não gosta de manchar as páginas com tinta. Mas não o faço. Em vez disso, a porta da cave abre-se, primeiro é um sussurro, depois guincha. Desde que habito esta moradia, nunca usei a cave. Lembro-me das sombras do romance “Caruncho”, de Layla Martínez. Mas a minha casa não é a mesma da minha infância nem da adolescência - mudei-me inúmeras vezes, e não conheço os armários e baús que povoam esta. Estou certa, porém, que, se fechar os olhos, recordarei as paredes de outra casa, a segunda, os gritos cravados no estuque, as sentenças ali proferidas, mas, sobretudo, recordarei a ausência, o abandono também é uma personagem principal nos romances. Os objetos desaparecendo, um por um, vendidos, roubados, pilhados, oferecidos, partidos, esmigalhados. E, depois, a aflição. Existe um certo tipo de aflição que corrói o corpo humano, que comprime as costelas e absorve o ar dos bronquíolos, uma aflição maior do que os pulmões, o coração, a faringe, a laringe, as cordas vocais. Essa aflição nunca mais desaparece - mingua, como um bolo sem fermento, houve um tempo em que julguei que, se vendesse bolos suficientes, eliminaria as dívidas, os créditos, os telefonemas, os julgamentos.

O problema, caros colegas, é que existem vários tipos de peste. A pestilência do dinheiro, por exemplo, não é contagiosa; é viciante. É pena que não venha nos compêndios médicos.

***

A cave abriu-se. Alguns livros fazem isto, abrem portas que julgávamos perpetuamente encerradas.

Em “I Who Have Never Known Men”, os homens que povoam aquele mundo estranho e singular, por motivos alheios à narradora, desaparecem. Não sabemos por que razão estavam no subsolo, vigiando quarenta mulheres, impondo regras que, aos nossos olhos, são rígidas, aleatórias, algumas estapafúrdias.

Há dias, ouvia numa série televisiva: “escolhemos perdoar não pelos outros, mas sim por nós próprios.”

Não sei se isso é verdade. Não há dados científicos que o comprovem.

***

do meu corpo, qual foi a razão para que a morte
e a solidão começassem? a doença, dizia alguém
tão longe. a doença, a doença, repetia tão longe.

― “A Casa, a Escuridão”, José Luís Peixoto

Dirijo-me à cave. Deixei o livro, o lápis e os relatórios em cima da mesa. Desço os degraus, que rangem à minha passagem, cerram os dentes, há neles uma espécie de raiva latente, como o calor que os muros exalam numa noite de Verão. Descubro que, apesar de mergulhar na escuridão, ainda consigo ver - é preciso não esquecer de registar o fenómeno. Há um corrimão, que não uso. Nesta cave, não existem pessoas, animais, objetos. Está vazia. Estou habituada às caves povoadas, a casas abarrotando de gente, gestos, corpos, sangue, restos. Viro-me, desiludida, e encaro a porta escancarada, que deixa entrever a luz. Descubro, porém, que a cave é confortável. Parece fresca no verão e quente no inverno. Respira-se melhor aqui. As paredes não estão manchadas, não há fendas, tinta desbotada, marcas de humidade, cheiro a mofo. O silêncio agrada-me, é puro, o isolamento deve ser bom, não é como o que forra o meu quarto, ouço o vizinho a urinar, portas a fecharem-se, o sinal sonoro das mensagens recebidas pela adolescente que passa as tardes em casa a estudar.

Ah, então é isso.

É assim que ficamos fechados na cave. Não é por imposição.

É uma escolha.

***

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgávamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.

― “A Casa, a Escuridão”, José Luís Peixoto

Estou na cave. Não sei quanto tempo passou. O telemóvel ficou lá em cima e, por esta altura, a bateria deve ter terminado. Não como, não bebo, o meu corpo deixou de obedecer às regras da fisiologia humana. De vez em quando, preocupo-me pelos gatos, até que me apercebo que têm uma fonte elétrica com água fresca e um dispensador automático de comida. Estou sentada, observo a escuridão, que me olha de frente. Intriga-me que a cave esteja vazia, sempre achei que os seres humanos guardavam tralha nas caves: caixas de cartão com brinquedos da infância, álbuns de fotografia herdados, conjuntos de chávenas e bules e pratos e facas e garfos e copos, postais ilegíveis com cidades que nunca ninguém visitou. Achava que a escuridão era como as sombras descritas por Ursula K. Le Guin no universo de “Terramar”, gémeas, catalisadoras da destruição. Mas as sombras estão inertes. De vez em quando, lembro-me que devia estar a registar tudo nos relatórios. Mas, na verdade, nem sei que para servem.

A peste é uma coisa estranha, penso. Existem tratamentos, mas poucos são os que os procuram. De tempos a tempos, os familiares descem às caves, abanam os homens ou mulheres que ali se encontram (são quase sempre homens, porém - faz parte das estatísticas publicadas com os dados dos relatórios), recolhem os objetos que as suas mãos continuam a procurar, levam-nos para casa, tiram-lhes os telemóveis, os cartões de crédito, o dinheiro, vestem-lhes fatos, camisas, casacos, mostram-lhes os filhos, gritam, dão-lhes pastas, malas, objetos, conduzem os seus corpos aos seus empregos, tudo para, no meio da noite, acordarem com o barulho dos seus dedos, as mãos que nunca sossegam, os gestos de baralhar as cartas, de lançar os dados, de pressionar botões.

Há quem se salve, claro. A peste não é uma fatalidade. Mas a peste erode, consome, fragiliza. E até as mais imponentes falésias desabam.

***

Não há nada que me resgate. Esta não é uma dessas histórias.

Creio que, antes, menti. É uma das premissas dos relatórios - nunca mentir. Perdoem-me, caros colegas, não fiz por mal. Redir-me-ei, prometo.

Há uns anos, tive um sonho. Conduzia ao som da música de Max Richter, a estrada vazia alongava-se no horizonte noturno. Eu não estava sozinha - do lado do passageiro, existia um homem. Devo ter-lhe reconhecido o rosto, porque a sua visão me causou um profundo sofrimento. Falava comigo, usava óculos de sol, apesar da noite densa, interrompida apenas pelas luzes da cidade anónima. De súbito, apercebo-me que há um escorpião no carro. Entro em pânico. Se continuar a conduzir, o bicho, assustado, irá atacar, essa é a minha certeza. Não sei o que é preferível, morrer devido ao veneno do invertebrado ou à custa dos ferimentos provocados por um acidente de automóvel. O homem a meu lado sorri, o que me causa repulsa e indignação. Quero gritar-lhe que estamos prestes a morrer. É então que escolho. Estamos quase a entrar num túnel, viro o volante, batemos, os vidros estilhaçam-se e cortam-me o rosto, os pulsos, as coxas, o meu corpo é projetado contra o volante, os braços ensanguentados sobre o capô, o rosto virado para o passageiro que, ainda sorrindo, me revela que o escorpião o atacara, que não me preocupasse. Quero gritar-lhe que nada disso é relevante, morreremos ambos de qualquer das formas, como na fábula do escorpião e do sapo, mas ele não me responde, o seu semblante permanentemente congelado naquele sorriso, os olhos abertos fixando-me.

Contei este sonho a uma pessoa, que não lhe atribuiu importância, os sonhos não significam nada, são produtos da mente, toxinas que o nosso cérebro expulsa. Tentei explicar-lhe que a agonia era real, as sombras da cave plantadas no meu corpo, mas penso que não terá compreendido ou escolheu não compreender. Mais tarde, tenho medo de conduzir, estaciono o carro na berma da estrada, recordarei este sonho durante anos, ainda que saiba que não faz sentido, não tem coerência narrativa, não há conhecimento sobre as personagens, não é eficaz nas vendas, ainda que saiba tudo isso é o sonho que quase me destrói.

***

I was forced to acknowledge too late, much too late, that I too had loved, that I was capable of suffering, and that I was human after all.
― “I Who Have Never Known Men”, Jacqueline Harpman

Levanto-me, ajeito as calças, subo os degraus. Fecho a porta, pego na bata, coloco as folhas dos relatórios numa mochila e saio de casa. Chamo um táxi. Fora da cave, começo a sentir fome, sede, vontade de urinar, sono. Recosto-me no assento e observo as luzes da cidade, constelações artificiais que seguem o padrão da ordem humana. Peço para sair quando estamos perto do estabelecimento. Calcorreio os passeios desnivelados, chove, as beatas transformadas em barcos velejam rua abaixo, a espuma do detergente usado pelas mulheres para desincrustarem restos de fezes de cão, urina e cerveja lambe os veleiros como a espuma do oceano. Entro no edifício decrépito, contorno as mesas e a televisão que exibe anúncios de chás para emagrecer, abro a porta da cave, desço as escadas, os homens estão nas mesmas posições, os corpos simultaneamente vivos e mortos, a peste sentada à mesa recolhe os seus pertences, incluindo a aliança que um dos homens retirara, a que mesma que eu descrevi com rigor. Os seus olhos continuam abertos, fixos na mesa, as mãos dançantes.

Aproximo-me do homem. Tem um fato vestido, roído pela humidade da cave, a gravata impecavelmente apertada. Lembro-me das gravatas penduradas no armário do meu quarto, oferecidas pela minha avó aquando o despejo, guarda-as, oferece-as, se quiseres, mas não as deites fora.

Há outra regra neste trabalho - não podemos, em circunstância alguma, tocar nos sujeitos. Mas Deus perdoar-me-á se fechar as pálpebras deste homem que foi, em tempos, o meu pai. E, se não for Deus, que seja outra coisa qualquer.

Pois eu, que, afinal, sonhei com o abandono, escolho, hoje, escrever o meu último relatório. E escolho sair da cave.

Porque hoje, pelo menos hoje, a escolha é minha.

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