As notícias que ficarão gravadas na alma chegam sempre através de um telefonema.
Há telefonemas que se assemelham a tempestades. Anunciam-se, trazem um nome no ecrã luminoso do aparelho. O som que o telemóvel projeta é agudo, o corpo estremece e, de repente, estamos no olho do ciclone. A perda é assoberbante - mas é também o que nos nutre. Alimenta-nos de palavras, que purgamos como a fisiologia nos comanda. E paralisa-nos como veneno.
Escrevo para sair do olho da tempestade. Mas, mesmo quando abandonamos o epicentro da violência, há minúsculos estilhaços de vidro que carregamos debaixo da pele e que sentimos como agulhas, ainda que os médicos decretem que as radiografias não revelaram objetos estranhos, está tudo na nossa cabeça, a dor, a estranheza, e que o enfermeiro execute o tratamento com lentidão, sabendo que há dores que não se expurgam, e o médico nos mande embora com um antibiótico na mão, não vá a ficção infetar.
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Naquele dia, segunda-feira, sete de outubro, não existiu claridade. A tempestade havia sido anunciada nos noticiários, nas redes sociais e nas bocas dos cidadãos que, em vez de moedas, trocavam lamentos antes de se ouvir o primeiro rugido do céu.
Chamaram-lhe “Kirk”.
Aprendo que há uma lista de nomes para tempestades e ciclones que ocorrem por ano. Criadas em 1953, estas listas são reutilizadas a cada seis anos. Em 2024, “Kirk” é o décimo primeiro da lista. Estudo os restantes nomes. Em 2027, o nome “Teresa” está reservado como décimo nono para os eventos ocorridos no oceano Atlântico. Quando as tempestades são demasiado destrutivas, o nome é retirado da lista e não é mais atribuído.
Pergunto-me como seria se, na realidade, eliminássemos nomes da nossa vida quando são demasiado destrutivos. Talvez, dessa forma, eliminássemos tudo o que nos provoca dano através do exílio de um nome. Em “Um Feiticeiro de Terramar”, de Ursula K. Le Guin, o nome “verdadeiro” das personagens, nome esse que é escondido da maioria das pessoas, torna-as vulneráveis. E, ao mesmo tempo, conhecê-lo é uma prova de afeto, de intimidade. De amor.
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Encontrámos uma gata abandonada a sete de outubro. Era muito pequena, o seu corpo parecia uma pérola abandonada num esgoto. Foi assim que a vi, em pleno túnel da Avenida da Liberdade, agarrada a uma sarjeta. Tentei apanhá-la, mas a bichana escapuliu-se e escondeu-se nas entranhas do nosso carro. Uma hora e alguns minutos depois, embrulhei-a numa toalha e levei-a para casa.
O gato que adotámos em 2014 faleceu há um ano. A minha mãe, o ser humano mais próximo do animal, carregou o luto como quem se enrola numa manta pesada. Eram muito próximos, partilhavam a cama, a cozinha, as lidas da casa, as lágrimas e as alegrias. Foi o nosso segundo gato. Chamei-lhe Yuki, porque, apesar de não ser branco como a neve, parecia que tinha rebolado sobre tinta branca à nascença. Era a preto e branco, como os filmes que passavam na televisão de madrugada e que nem ele nem a dona viam, adormecidos no sofá. Viveu dez anos, e morreu inesperadamente, após meses com uma doença desconhecida que lhe provocava convulsões e lhe levou quase um quilograma do corpo.
Não pedi à minha mãe que ficasse com a gata. Porém, dadas as circunstâncias, e como temos, em casa, dois gatos que estão ainda a aprender a conviver um com o outro, ela aceitou adotá-la. Talvez seja um sinal, digo-lhe. Um bom ou mau, pergunta-me. E eu repito que é um sinal bom, como uma oração; afinal, as pessoas procuram no mundo peças que o ordenem.
Horas depois, a veterinária pergunta-nos que nome queremos dar ao animal. Chamamos-lhe Libby, porque é o mais parecido que encontramos com “Liberdade”, o nome do túnel onde a encontramos. O resgate conduziu-nos a este momento. A médica insere o nome no computador, formaliza a adoção. Compramos os objetos e utensílios necessários, e eu despeço-me da gata, sabendo que tudo está em ordem, valeu a pena as horas de resgate, digo para mim própria. Como uma oração.
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Consulto novamente a lista e aprendo que existiu um tufão chamado “Libby”, no Japão, em 1948. Aumentou de intensidade e atingiu o pico no início de outubro. Foi considerado extinto no sétimo dia desse mês.
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O quarto onde escrevo tem uma janela grande, que me permite ver as árvores, os prédios, os carros que estacionam, inadvertidamente, numa rua estreita, o jardim que separa o meu apartamento dos outros. Lembro-me que, certo dia, vi, dessa mesma janela, uma gata a brincar na relva do jardim. Soube logo que era uma gata, talvez pelo seu tamanho, tão pequena, uma mancha negra a trautear pelas gramíneas. Fiquei a observá-la, aninhada, atenta aos movimentos pretensiosos dos melros que, ignorando o pequeno mamífero, debicavam pedaços de bolachas que os estudantes deixam cair.
A partir de então, passei a ver a gata com frequência.
Os gatos de rua têm nome? Sacha, Bimba, Piqui, Luna, Bichana. Os gatos de rua têm todos os nomes do mundo e não respondem por nenhum. Desviam-se das letras como quem se desvia de poças com água estagnada e, se tocados por elas, sacodem o corpo, libertando-as no horizonte. Mas, quando desço a rua, se a chamo com a onomatopeia que a minha avó usava, tal flautista de Hamelin, ela corre até mim, esfrega-se nas minhas pernas como quem diz
demoraste.
Debatemos sobre se devemos ou não adotar a gata. Ordenamos argumentos a favor e contra. O gato que adotámos em 2020 poderá não se adaptar. A esperança média de vida dos gatos de rua é menor. A gata pode ter doenças e transmiti-las ao nosso gato. Pode ser atropelada. Os vizinhos dão-lhe comida e ela parece feliz.
Dedico-me, durante um ano, a alimentar a gata que ronda o apartamento. Não sou a única - existem vários recipientes com comida e água, caixas de cartão com mantas. Dizem-me, enquanto troco a água, que houve quem já a tentasse levar para casa, mas não se adaptou. Pertence à rua, dizem-me. E eu afago-lhe o pelo e convenço-me que é o melhor.
Certo dia, a gata adoece. Os seus movimentos tornam-se mais lentos, o olho esquerdo enche-se de pus, as costelas tornam-se mais visíveis. Não protesta quando a levamos à veterinária. Fazem-lhe testes, retiram-lhe sangue, fotografam-lhe os pulmões. Não há diagnóstico. Damos-lhe medicamentos, estabelecemos um horário para verter as gotas no olho mirrado da bichana, construímos uma casota de cartão que colocamos nas escadas do prédio, somos ajudados pelos vizinhos. Até que, um dia, a sua íris dilata e desmaia na rua, o corpo repleto de lesmas intumescidas.
Eis, então, a morte.
A gata é internada. Alertam-me que a sobrevivência não está garantida. Caminho para casa, observo a folhagem tenra das árvores. Não peço nada a ninguém, apenas a mim própria. Lembro-me que, quando era criança, me explicaram a importância de rezar e de falar com Deus, sobretudo se queríamos que Ele nos escutasse. Mais tarde, na faculdade de medicina, explicaram-me que, se estudasse com afinco e decorasse todas as páginas dos tratados, iria conseguir salvar pessoas. Deus e a ciência pareciam dar ordem à vida - e, em alguns casos, afastar a morte. Bastava ter convicção na repetição.
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Não dou ordens a Deus. Não trabalho em situações de emergência. Não crio uma ordem através de orações ou de protocolos de atuação imediata. Durante muito tempo, tentarei juntar palavras e formar frases para ordenar pensamentos e emoções.
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A gata (chamamos-lhe Nori) sobrevive. Formalizamos a adoção enquanto recupero de uma cirurgia. Vem-me à cabeça a expressão “Deus escreve direito por linhas tortas.”
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As notícias que ficarão gravadas na alma chegam sempre através de um telefonema.
A minha mãe anuncia-me a morte da Libby. Era muito pequena, não sobreviveu a uma infeção. Segundo a veterinária, os gatos de rua, quando são muito jovens, têm vários problemas de saúde. Há desordem no seu telefonema. O luto é uma desordem. Vem-me à cabeça as palavras da realizadora Catarina Vasconcelos. Nunca percebi as fases do luto de Elisabeth Kübler-Ross. Essas fases sempre me falharam. Talvez isto seja uma tentativa de ordenar o que é impossível de ser ordenado.
Digo, para mim mesma, que já sofri coisas piores. Pessoas que morreram, animais que partiram e que estiveram mais tempo connosco. A Libby viveu pouco tempo. Mas, algures numa aurícula, ficou tatuado o resgate da gata que chegou a ter um nome, em plena tempestade “Kirk”. Dizem-me que o importante foi não ter morrido na rua, e sim sem sofrimento, num lugar quente, confortável. Sinto-me hipócrita, reles. Há tantos seres vivos que morrem diariamente, que para mim são anónimos, mas cujas vidas importaram, tiveram um nome. O que fiz eu por eles? Nada.
Os dias continuam a passar, ordenadamente, primeiro sexta-feira, depois sábado, depois domingo. O sofrimento continua. É um pano de fundo num outono quente.
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Estou sentada numa cadeira da livraria, prestes a assistir ao lançamento de um livro de poesia. Ouço a escritora que se prepara para apresentar o autor da obra, que escreve “sobre a perda”. Sobre a identidade. Sobre a memória.
Não consigo prestar atenção à sessão. Mal chego a casa, abro o livro de Joana Estrela, “Gato Comum”. As páginas amarelas parecem ondas, perderam a sua aparência lisa, porque a humidade se entranhou nas ilustrações e nas letras durante a primeira leitura. O luto é um lugar húmido, penso, capaz de vergar qualquer objeto. Pouso o livro na mesa e releio-o uma segunda vez.
Aliso a toalha, os seus vincos lembram-me vasos sanguíneos tortuosos, apago-os, uma, duas e três vezes. Há muito que não coloco objetos na mesa, receio que os gatos derrubem jarras, como nos vídeos que povoam a internet, cuja graça é apenas destinada a quem, à distância, se ri com o comportamento felino, repetido em dezenas de segundos empilhados. Mas hoje decido deixar o livro sobre a mesa. Um livro não se parte.
Procuramos uma ordem nos lugares que povoamos. Mas é a desordem que toma parte da nossa existência, povoa os lugares onde vivemos. É preciso aceitar a desordem. É preciso aceitar, digo, quando chego à parte em que o gato da história morre.
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“Leslie” é o nome da nova tempestade. As ruas da cidade ainda estão repletas de vestígios do “Kirk”: corpos de árvores tombados, caixotes do lixo caídos, folhas e detritos no pavimento, buracos escavados no chão. O trânsito força-nos a entrar pelo túnel da Avenida da Liberdade. Passamos pelo local onde vislumbrei a Libby pela primeira vez. Uma gata de pelo branco e três manchas negras no focinho, a cauda escura. Ronronou quando foi afagada pela veterinária. Brincou com uma pequena bola de tecido quando esperava pelo raiar do dia. Enroscou-se numa manta. Viveu, e depois morreu. Tal como uma tempestade. Tal como uma vida comum. Como um gato comum. Como tantos gatos comuns.